quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Vai haver memória?


A lei da Memória Histórica, que as Cortes Espanholas se preparam para votar, não sendo a ideal, é um sinal que finalmente alguma justiça irá ser feita a milhares de homens e mulheres que lutaram pela legalidade, pela liberdade, e por princípios tão democráticos como o direito de escolher o chefe do seu estado.
Não é possível olhar para o levantamento fascista do 18 de Julho de 1936 e lembrar que este apenas tem lugar porque a direita não respeitou os resultados das urnas de de 14 de Fevereiro, que ditaram a vitória da Frente Popular. Não é possível desligar desta sua atitude todas as acções violentas levadas a cabo durante o tempo em que foi maioritária no biénio 33-35.
A República vinha tentando uma política de dignificação da população espanhola através do ensino, a que lhe pertencem inegáveis sucessos, da resolução dos problemas nacionais e culturais, reconhecendo a autonomia política e linguística ao País Basco, Catalunha e Galiza (sendo que esta foi imediatamente travada com o golpe militar).
Pretender dizer hoje, como se intenta, que o terror Fascista e o Repúblicano eram imágens quirais é uma completa falácia. É certo que as populações levadas por um exacerbar de paixões atacaram igrejas e conventos, mataram e perseguiram os religiosos, profanaram tumbas, lançando-se numa verdadeira caça ao homem. Mas é também verdade que essas populações se viraram contra quem identificavam como um soldado das forças inimigas, ainda que de batina, que desrespeitando a vontade expressa iniciaram a guerra cívil. E que infelizmente, como vem demosntrando a história do comportamento da Igreja em geral e espanhola em particular, não é totalmente falso.
O mais que reconhecimento prestado a essas, e outras, vitimas da parte fascista, contrasta vivamente com o opróbrio vivido pelas vitimas ou familiares de vitimas repúblicanas, com os seus entes ainda hoje, transcorridos quase trinta anos da Constituição de 1978, desaparecidos, valas comuns, crianças retiradas à força às familias, etc.
Dizer que não é necessária qualquer lei de memória é, no mínimo, tão criminoso quanto advogar o levantamento Franquista. Revelando que existe ainda no seio da direita a certeza que a recuperação da memória trará como consequência também a perda do medo que impede a discussão no seio das sociedades espanholas das questões ligadas à transição e à constituição de 78.
De facto, se fizermos uma análise clara verificamos que até Março de 39, existia uma legalidade de regime que vinha não só das municipais de 31, e que precipitaram a queda da monarquia, mas também das sucessivas eleições para as Cortes repúblicanas. Essa legalidade foi quebrada em parte da Espanha pelo levantamento de 18 de Julho e no resto do Estado com o fim da Guerra Cívil.
Reconhecer como legal o regime de Franco, equivale a fazer um reconhecimento de uma realidade que não só manteve uma feroz repressão e perseguição aos opositores durante toda a sua existência, mas que era também um pilar do Nazi-fascismo derrotado em Maio de 45, que apenas se manteve com o beneplácito dos EUA e do Reino Unido, convencidos da vitória das forças de esquerda e aumento do prestigio do Partido Comunista que, diga-se, não representava ao início da Guerra Cívil mais do 5% dos votos.
A Constituição de 78 foi um produto apresentado ao povo em refrendo, como um produto completo. Para não arriscar o desfavor do fascismo e da direita instalada nos mais diversos órgãos de poder, apresentou a Monarquia Burbónica constitucional como alternativa aos ditames do movimento puro e duro. Foi nesta estreita margem que os partidos repúblicanos e ligados às nacionalidades, como PSOE, PCE, PSUC, PNV, dão a sua aquiscência, e seria bom que o PSOE tivesse isto presente.
Daí qualquer que fosse a sua opção qualquer espanhol que almeja-se a mais alguma liberdade e democracia sufragaria este entendimento de mínimos. É um facto que ela constitui uma nova legalidade, mas não resolve o problema que ficou para trás, porquanto ninguém se pronunciou sobre a alternativa republicana.
Daí que o apelo a este debate aberto pelo Manifesto pela Terceira República, e que declara esgotado o modelo constitucional vigente tem toda a razão de ser, e terá que se fazer à medida que o movimento republicano cresce.
A nova Lei da Memória, mais do que uma lei de memória, poderá e deverá ser uma lei que liberte a memória e as ideias até aqui espartilhadas pelo medo de um retorno ao franquismo. Esperemos que seja aproveitada.

Sem comentários: