quarta-feira, 27 de agosto de 2008

As Verdades Simples



Esta noite regressei de certo modo ao passado, a um passado que também é meu porque dele fiz parte. Mandaram-me por mail um video intitulado "A criança que calou o mundo durante cinco minutos". Curiosamente o discurso desta criança não me soava estranho e ao verificar a data e local do mesmo percebi porquê. Fui um dos afortunados que esteve na Cimeira do Rio 92, e digo afortunados porque de lá trouxe muita materia de reflexão e análise, que se têm justificado válidos ao longo dos anos, por muito que me dissessem que não. Na altura ao ouvir várias organizações de base, desde associações, partidos, sindicatos, ONG's, Institutos científicos etc, fiquei suficientemente convencido que um dos maiores problemas que a humanidade tem encontrado no seu desenvolvimento, tem sido a acumulação de propriedade, quer em bens quer em capital, à custa da expoliação da maioria da humanidade do seu quinhão de riqueza gerada, dos recursos naturais e da sua força de trabalho.

Anos atás, quando li "O Papalaguy" pela primeira vez, achei muito divertida a sua descrição da Bolsa de valores, em que dizia que seguramente só por artes de magia negra a riqueza se multiplicava, uma vez que nada aumenta sozinho. E de facto não se afastava muito da realidade. Se considerarmos que o valor acrescentado só se consegue com matéria prima (recursos naturais) e trabalho (a tecnologia, que nos ensinam nas escolas que é fungível com o trabalho, tem também ela trabalho incorporado a montante), e qua para ser transformado em lucro tem de ser apropriado a um desses factores, por forma a aumentar o capital inicial, facilmente vemos que para se acumular numa ponta tem de faltar em outra. Isto é para que alguém tenha o acesso ao privilégio, a alguém lhe faltou um direito, à justa remuneração, à satisfação das suas necessidades, ao acesso a um recurso natural necessário. Quando aumentamos por milhões esta situação, vemos facilmente que o crescimento de parte do Mundo é feito em grande medida do sofrimento da outra parte, e necessariamente da parte maior.

O assalto aos recursos é normalmente feita com os ganhos para o chamado Mundo industrializado e as externalizações sociais e ambientais a serem sofridas pelo Mundo não industrializado, decalcando em larga escala o que se passa dentro de qualquer país de modelo capitalista de produção, em que os lucros são apropriados pelos privados cabendo-nos o ónus do pagamento, através dos impostos, da poluição, ou pagando como um todo as más condições de vida, de saúde, de educação e cultura. Daí que o Chefe Tuiavea estivesse, na sua simplicidade, coberto de razão. Só mesmo algo muito tenebroso se estaria a passar para que a riqueza se multiplicasse, como por milagre nos bolsos de alguns.

Tinha razão ele e tinha razão a menina que se dirigiu aos Governos presentes na Cimeira do Rio. Tinha razão, mas na sua ingenuidade infantil não encontrava outras respostas que não fossem o entendimento, a solidariedade, a generosidade, o que é natural. Na sua idade, e com a informação que tinha à disposição (e que provavelmente não deve ter tido grande alteração) não podia fazer uma análise de relação dos factores de produção e da injustiça e desumanidade que representa a acumulação de capital. Contudo viu com clareza que algo de muito mesquinho e pérfido se escondia por detrás das acções de negar aos outros qualquer direito ao bem estar, ao alimento, ao abrigo, à saúde e até aos sentimentos, como tinha feito notar o menino de rua.

Estas questões são as tais de que o Índio do Caetano Veloso falaria concerteza, pois o que ele dirá, espantará por ser o óbvio. E no entanto 16 anos depois estamos na mesma, senão pior, tendo-se intensificado a açambarcamento dos recursos afectando inclusive a alimentação mais básica, em nome de uma produção e de um crescimento económico de que raros vêm regalias.

Como disse este é um texto de reflexão... mas é inegável que Marx vive.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

A Andorinha



Ainda que esta entrada tenha o nome de andorinha nada tem a ver com esta espécie de aves, ainda que aprecie muito a sua presença nos beirais, dos quais vem sendo desalojada por força de uma humanidade que não só não sabe conviver com os animais, como coloca o interesse imediato da aparencia imaculada das suas fachadas acima de interesses muito mais importantes que são os equilibrios naturais. Mas de facto não é esse o tama desta entrada.

Chamei-lhe a andorinha, porque finalmente com a conquista de uma medalha de ouro, parecem ter-se recomposto os anímos e serenado as tempestades em que se ameaçavam transformar a lusa participação em Pequim.

Subitamente tudo volta a ser flores, estamos satisfeitos nos nossos pátrios orgulhos e não mais se discutirá quais as razões da nossa fraca prestação desportiva. Alías nem sequer há grande coisa para discutir, uma vez que já tudo está identificado. Quem lê-se alguns jornais, nos últimos dias, saberia que 90% dos estabelecimentos de ensino tem desporto escolar, e que é este que permite a competição dos futuros atletas; Que um esforço enorme foi feito, por esse país fora, na construção de polidesportivos; Que foram gastos M€ 14,00, pasme-se, nestes quatro anos de preparação olímpica; E que o contrato entre o Governo e o COP previa os resultados em quantificação de medalhas.

Se não fosse trágico seria cómico, e seria cómico porque mal se lê que o desporto escolar são o futsal e o voleibol (quando é), que os encontros entre colectividades estão a morrer, que não existe qualquer investimento nas modalidades amadoras, que os Clubes, como o Clube Naval de Lisboa que apoia o Remo e a Vela, têm condições deploráveis, que o Estádio Nacional, casa por excelência do desporto, está hoje cercado de urbanizações e que novas se adivinham (comendo mesmo parte dos estacionamentos que poderiam ter revertido para novas áreas desportivas), que os seus circuitos de manutenção são hoje uma memória do passado, e que os únicos investimentos feitos nos últimos anos têm sido no Ténis, com a finalidade de aí localizar o Estoril Open, e pouco mais. Não se diz também que os polidesportivos desse país são na sua maioria mal construídos, com písos improprios para outra coisa que não seja uns jogos de "futebol", que a maioria não permite disputa de desporto federado. Acresce ainda que as Escolas Secundárias e Básicas deste país muitas delas não tem ginásios, não têm balneários com água quente, piscinas nem pensar (e as que existem muitas vezes municipais não estão preparadas para prática desportiva, e quando estão são vitimas de desaproveitamento, degradação, e demolição, como é o caso dos Olivais em Lisboa, com a piscina de 50 metros e a de saltos para a água), juntem-se aqui muitos Campus Universitários em que o desporto não foi sequer tido em conta.

Poderia continuar aqui a fazer um relambório de mazelas, mas não vale a pena. Lembraria só que os 14 milhões de euros, pagam a fortuna de mil euros ao mês aos desportistas, do qual tem de sair o dinheiro para alimentação, estadia fora do local de residência habitual, transportes e material. Muito gostaria eu de saber como é que eles conseguem, e não me espanta nada os abandonos após os Jogos (esperemos a bem do desporto nacional que sejam só reacções a quente). E isto, meus caros, não abranje todos os nossos desportistas, apenas os considerados de elite.

Sabendo-se que a qualidade, como em quase todas as actividades humanas, vem da quantidade de praticantes e qua a excelência vem do apuramento da qualidade (e não de uma qualquer fantasia governamental de centros dessa coisa), seria por aí que havia de começar, estimulando e fomentando a prática do desporto amador, triando os valores que começassem a aparecer e dai formando-os e apostando fortemente na sua preparação.

Como estamos, temos valores que aparecem descobertos por alguém com maior cuidado e empenho, desenvolvidos com grandes esforços pessoais, e afirmando-se com uma dose superior de teimosia e sofrimento. Assim quando algum ganha alguma medalha, era isso que devia ser lembrado e não usado como remendo para a nudez do rei. Por mais merecida que seja, e foi-o, não devemos deixar o brilhante feito do Nélson ou da Vanessa, cegar-nos a ponto de vermos uma primavera feita apenas por escassas andorinhas.

A todos os nossos representantes em Pequim agreço o esforço, o trabalho, o sofrimento, o empenho que colocaram ao longo destes anos, nos quais trabalharam para garantir uma presença nos Jogos Olímpicos, contra todas as adversidades existentes num país que espera sempre muito mais do que as condições que garante permitem. São e serão sempre lembrados por terem honrado o país, quer tenham ou não medalhas. MUITO OBRIGADO.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Somos nós homens ou mercadorias?

O seguinte é um pequeno texto que escrevi antes do início dos Jogos Olímpicos de Pequim para o jornal "Registo". Infelizmente devido a infortunios do destino acabou por não ser dado à estampa. Embora o assunto tenha sido um pouco ultrapassado pelos acontecimentos, deixou sequelas que voltarão a colocar-se quando mais uma vez colidirem os direitos de cidadania com os interesses dos clubes, e seguramente não será só no futebol. Mais tarde ou mais cedo será em outros desportos, quando os direitos dos atletas colidirem com os interesses dos patrocinadores e mesmo na vida comum do cidadão quando os seus direitos colidirem com os das empresas que os empregam.
É urgente travar o passo a uma sociedade que procura mercantilizar todas as formas de relações e todas as dimensões da vida humana, transformando a vida num imenso mercado. Por isso deixo a transcrição desse texto que não chegou à publicação.

Tomei conhecimento que o Tribunal Arbitral do Desporto atendeu às pretensões do Futebol Clube de Barcelona, desobrigando-o de ceder o jogador Leonel Messi para a representação olímpica da Argentina. Normalmente estas questões de futebol passam-me um pouco ao lado mas, neste caso, prestou-se a uma reflexão que nada tem de estival.

Messi, cidadão Argentino, é impedido de representar o seu país porque, para o Tribunal, mais importante que o seu direito de cidadania é o interesse do clube que o emprega. Ou seja, na lógica destes juízes a Empresa sobrepõe-se ao próprio Estado.

Estamos no mais absoluto cumprimento do paradigma capitalista. Não tem valor a cidadania face ao valor que este homem representa, como mercadoria em bom estado para o proprietário, que o pagou a bom preço e tem de ver o seu investimento protegido. Os tão incensados direitos humanos podem portanto ser vergados ao interesse do mercado. Aliás podem ser sempre obliterados quando o que está em causa é o seu funcionamento.

No novo mundo em que vivemos, que de facto é bastante velho, só temos valor então enquanto mercadorias. Se vingarem estas posturas estaremos todos ao sabor de quem dá mais.

Nota: Já depois de ter escrito esta coluna inteirei-me que Messi foi autorizado a competir em Pequim, porem a Federação Argentina teve de comprometer-se a accionar um seguro, a favor do Barcelona, em caso lesão ou seja de “dano da mercadoria”. Medonho a forma como de humanos, passamos a mercadoria.


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Paz Olimpica



Nos Jogos Olimpicos da era antiga mandava a tradição que reinasse a Paz durante a realização dos mesmos, a quebra da mesma significava não só o afastamento dos competidores da Cidade-Estado em guerra, mas também o amaldiçoar daquele que a tivesse iniciado. Mesmo as guerras em curso ficavam sob um estrito cessar-fogo (esta palavra é caricata utilizada num contexto de inexistência de armas de fogo, mas é mais perceptível assim)até ao termo das Olimpiadas.

Quando foram retomados na era moderna os Jogos a ideia não era apenas retomar competições ou ver quem ganhava mais medalhas, ainda que isso fosse uma das condições basilares porquanto só os vencedores ascendiam ao Olimpo, mas era renovar uma tradição de fazer pervalecer momentos de Paz mesmo em épocas conturbadas. Parece que ao longo destes cento e doze anos poucas vezes se tem recordado esta questão. Parece também que ao longo destes anos os responsáveis têm sido muito mais vezes aceites preterindo-se os agredidos (ou quem toma a sua defesa).

Não fazendo um longo historial que seguramente encheria de vergonha todos os que acreditam no espírito olimpico, gostaria de relembrar os acontecimentos que marcam estes jogos. O Governo Georgiano, acossado por perdas de popularidade interna e incapacidade de cumprir as promessas feitas ao seu povo, partiu, como já partiram outros antes dele, para uma acção militar que previa fulminante contra as regiões separatistas da Abkhassia, e da Ossetia do Sul. Falava, tal como tinha feito exactamente da mesma forma na Adária, de restaurar a integridade do país e unir os Georgianos. Acontece que nenhum destes povos, que habitam estas regiões há pelo menos um milénio, se reconheciam como Georgianos, quer pela lingua, pela cultura, quer pelos modos e tradições.

Era sabido de há muito que estes povos, que sempre tinham olhado para a Rússia, quer império quer após, como libertadora do jugo Georgiano, tinham após a desagregação da URSS, contado com os Russos para manter áreas autónomas em cujas populações dependiam em tudo da Russia, inclusive os sistemas de segurança social, e que possuiam passaportes Russos por vontade própria.

Estas populações queixaram-se sempre da opressão Georgiana e quem os oiça agora verá que se queixaram das tentativas de Georginização dos seus apelidos de familia, da destruição da sua língua e da marginalização que a Georgia lhes impôs.

Neste quadro, em que uma acção militar era a única forma de controlar estes povos, o Governo Georgiano não hesitou em aplicar o mesmo método que lhe permitiu o controlo de Batumi, e aproveitar o início dos jogos Olimpicos para se lançar numa aventura de consequências ainda imprevisíveis em larga medida.

Quer fosse pela Paz Olimpica, quer por acreditar na intervenção diplomática e militar do ocidente, quer por sentir que um coro de críticas se levantaria contra a Russia, o Governo Georgiano não pareceu contar com a reacção Russa, e quando isso se torna uma realidade incontornável, despudoradamente clama denunciando uma tentativa de limpeza étnica ou de invasão do país, que nunca existiram. Aliás se há refugiados e baixas de guerra, mesmo entre os cívis, elas devem-se apenas e exclusivamente ao aventureirismo dos dirigentes da Georgia.

Agora que está em vigor um cessar fogo, em que o espírito olimpico levou outro rombo não pequeno, embora pareça aguentar-se bem porque todos já esqueceram o que significa, iremos ver como se comporta o governo de Tiblisi. A verdade é que com as suas acções não só acelerou como avalizou soluções tipo Kosovo, com a agravante que os albaneses do Kosovo, eram isso mesmo Albaneses que ao longo dos tempos haviam cruzado as fronteiras da Sérvia e aí se instalando até, como se viu, alterarem a demografia e com isso exigirem auto-determinação, e os habitantes da Abkhassia, da Ossetia e da Adária, serem Abkhasses, Ossetas e Adares, logo com muito mais legitimidade.