segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ó escolas, semeai! Pela sementeira espera a cega humanidade.


Escola Secundária de Gil Vicente - foto de Hélder Cotrim

A quem passaria pela cabeça que no ano do centenário da proclamação da República uma das suas maiores conquistas – A Escola pública, estaria a passar por uma situação tão delicada, correndo mesmo o risco de desaparecer dentro dos anos mais próximos.
O desinvestimento no ensino público, não é segredo, vem sofrendo um agravamento nos seus vários níveis, patrocinado pelos sucessivos governos constitucionais, com especial ênfase dos anos oitenta a esta parte.
As várias reformas curriculares, a retirada de dignidade da profissão de professores, a falta crónica de fundos para a reabilitação do edificado e a renovação do material didáctico e mesmo as alterações que romperam com os mais básicos princípios democráticos, deixando sem voz nos órgãos directivos e pedagógicos os alunos, corroeram a qualidade do ensino público e só artimanhas várias impediram que ficasse à vista que vamos tendo camadas da população cuja preparação e capacidade crítica é gradualmente decrescente.
Os planos de reabilitação e recuperação do parque escolar eram, nesta segunda década do século XXI, absolutamente imprescindíveis, sob o risco de dentro de algum tempo nem espaços minimamente aceitáveis termos para a nossa população estudantil, e digo minimamente aceitáveis porque condignos foi coisa que não me lembro de terem alguma vez chegado a ser nestes últimos trinta anos.
A criação de uma empresa pública para a recuperação do parque escolar era, não obstante, apenas uma forma de retirar esse item do Orçamento de Estado, mas pior que isso era também uma forma de escapar a procedimentos transparentes nas empreitadas de concepção das obras a realizar. O mal seria ainda assim o menos se as obras realizadas fossem conformes às necessidades, porém, na grande maioria dos casos não foi o que aconteceu e a lista das escolas em que o espaço intervencionado se degradou logo em seguida é enorme, com tectos a cair, soalhos levantados, torneiras deficientes, sistemas de aquecimento deficientes, etc, e isto sem contar com aquelas em que as próprias obras destruíram as escolas que tinham um projecto antigo mas de qualidade funcional.
A culminar toda esta situação, ficou agora claro o porquê de passar a propriedade destas escolas para a empresa Parque Escolar. Por um lado porque é mais fácil a esta empresa alienar estes espaços, sendo medonho pensar que se pretende vender as escolas situadas nos centros das cidades, locais onde o preço do solo é alto – tal como se fez com quartéis e hospitais, mas mais monstruoso ainda é pensar que se possa privatizar toda a empresa, passando para interesses ligados ao lucro a propriedade escolar e com isso permitir influências externas na educação, com alta probabilidade as mesmas que se pretenderam afastar com o advento da República. Seguramente o que não cabe na cabeça é que seja para melhor concessionar os espaços de bar ou papelaria que, tanto quanto me lembro, serviam para suprir as necessidades dos estudantes a preços módicos e, portanto fora de qualquer interesse comercial.
Quem diria que haveríamos de estar neste ponto cem anos depois, mas com certeza calculo o que diriam aqueles que se dedicaram afincadamente à causa do serviço público - Ó escolas, semeai! Pela sementeira espera a cega humanidade.


original em "Registo"

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ao mesmo inimigo, o mesmo combate


Foto do KKE

Ninguém tem dúvidas que o Capitalismo monopolista e as classes dominantes, que nele se apoiam, e que são a sua expressão social, tem o mesmo objectivo de apropriação do capital, dos recursos e dos meios de produção em todo o lado.
Na situação de crise actual a realização desse objectivo passa pela diminuição de direitos e regalias sociais de trabalhadores e pensionistas, sob o disfarce de que temos de fazer sacrifícios para acabar com a crise. A realidade é que há medida que o seu sistema financeiro se torna de dia para dia um sorvedouro maior, e em que os próprios economistas norte-americanos reconhecem que uma vez acabados os efeitos dos milhares de milhões de dólares e euros injectados no sistema a crise se fará sentir com força redobrada, as tentativas na União Europeia de diminuir salários, pensões, de cortar nos serviços públicos de saúde e de ensino, colocando o pouco que restava do estado nas mãos de privados, vai fazendo o seu caminho sob pressões e ameaças de catastrofes.
A Grecia é apenas o balão de ensaio de políticas que procuram atingir os trabalhadores em todo o continente em nome de um fim da crise que nunca será para esses mesmos trabalhadores. Hoje o povo Grego luta, mas a sua luta é de todos nós.
Compartilho convosco a declaração conjunta dos Partidos Comunistas Irlandês e Britânico, em solidariedade com os trabalhadores Gregos.
Boa leitura

Solidariedade com a classe trabalhadora Grega
Declaração conjunta
Partido Comunista da Irlanda
Partido Comunista da Grã-Bretanha
18 de Fevereiro de 2010
O Partido Comunista da Irlanda e o partido Comunista da Grã-Bretanha expressam a sua solidariedade para com a classe trabalhadora Grega, o PAME (Frente Militante de todos os trabalhadores) e o Partido Comunista Grego, na sua luta para defender as conquistas sociais e económicas dos trabalhadores Gregos.
A classe trabalhadora Grega encontra-se agora na linha da frente da luta de resistência às políticas anti-populares, ditadas pela União Europeia, impostas pelo governo do PASOK e apoiadas pela Nova Democracia e todos os sectores da burguesia Grega, unidos para fazer o povo pagar pela crise do sistema.
Condenamos o terror e a pressão levados a cabo pelo PASOK e da União Europeia e suas instituições na sua tentativa de impor cortes violentos na despesa pública, forçando ao corte de milhares de empregos no sector público e exigindo cortes na segurança social, e nos direitos dos pensionistas. Rejeitamos o conceito de “responsabilidade partilhada” pela crise e pela recuperação apresentadas pela União Europeia e pelos governos de todos os estados membros, bem como pelas suas vozes nos meios de comunicação social.
Os trabalhadores irlandeses experimentaram um terrorismo e pressão similares por parte da União Europeia, ambos durante o segundo referendo ao Tratado de Lisboa e suas exigências de imposição de cortes maciços na despesa pública no último orçamento apresentado pelo governo Irlandês. Os trabalhadores britânicos enfrentarão também perspectivas de cortes variáveis na despesa pública e possíveis cortes nos salários.
A União Europeia tenta resolver a crise do capitalismo monopolista no interesse dos monopólios, atacando os direitos e condições de trabalho. O papel que a União Europeia desempenha confirma o nosso ponto de vista que este bloco e suas instituições são antidemocráticas, anti-trabalhadores e anti-povo.
Apelamos aos sindicatos Irlandeses e Britânicos e a todas as forças progressistas a expressar a sua solidariedade para com a classe trabalhadora Grega neste momento crucial com mensagens de apoio e outros actos de solidariedade. A luta do povo Grego na defesa das suas conquistas económicas e sociais e na defesa da soberania do seu país é partilhada pelos movimentos de trabalhadores por toda a Europa.


Texto original (em inglês)

*Solidarity with the Greek working class*

*Joint statement
Communist Party of Ireland
Communist Party of Britain*


18 February 2010


The Communist Party of Ireland and the Communist Party of Britain express our solidarity with the Greek working class, PAME (the All-Workers Militant Front) and the Communist Party of Greece in their struggle to defend the social and economic gains of Greek workers.

The Greek working class in now in the front line of the struggle to resist the anti-people policies being dictated by the European Union, imposed by the PASOK government, and supported by New Democracy and all sections of the Greek bourgeoisie, combining to make the people pay for the crisis of the system.

We condemn the scaremongering and bullying by PASOK and by the European Union and its institutions as they attempt to impose savage cuts in public spending, forcing the shedding of thousands of public-sector jobs and demanding cuts in welfare and pension rights. We reject the concept of “shared blame” for the crisis and “shared responsibility” for overcoming it presented by the European Union and by the governments of all the member-states as well as their ideological voices in their mass media.

Irish workers have experienced similar such bullying and scaremongering by the European Union, both to force through the second vote on the Lisbon Treaty and in its demands for the imposition of massive cuts in public spending in the last budget presented by the Irish Government. British workers will also be facing the prospect of swingeing cuts in public spending and possible pay cuts.

The European Union is attempting to solve the crisis of monopoly capitalism in the interests of the monopolies by attacking the rights and conditions of workers. The role that the European Union is playing confirms our view that this bloc and its institutions are anti-democratic, anti-worker, and anti-people.

We call upon the Irish and British labour and trade union movements and all progressive forces to express their solidarity with the Greek working class at this crucial time with messages of support and other acts of solidarity. The struggle of the Greek people to defend their social and economic gains and to defend the sovereignty of their country is one shared by workers’ movements across Europe

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Harakiri lento


Foto do Ministro John Profumo originária de "The Guardian"

A situação, que aliás já era insustentável, dos vários escândalos em torno do Primeiro-ministro, vai-se tornando completamente insuportável à medida que cada embrulhada parece conduzir a outra de maiores proporções, começando a erodir não apenas a imagem do Governo, mas lamentavelmente de todo o aparelho de Estado.

Tudo parece indicar, e desde já afirmo solenemente por minha honra não ter ouvido nenhuma das escutas ou sequer lido a sua transcrição, que a justiça em lugar de actuar como devia salvaguardando o Estado e a República, preferiu comprometer-se salvando o Governo e aqueles que lhe estão directamente ligados.

O chamado quarto poder que, ou estava directamente manietado pela actuação e pressão governamental ou indirectamente por depender de grupos económicos escandalosamente conectados aos interesses deste, só por algumas excepções parece ter percorrido o caminho da investigação e crítica da situação, procurando, se não toda, pelo menos parte suficiente da verdade que esclarecesse a nebulosa em que nos fomos todos enredando.

Não quer isto dizer que as vitimas de hoje não tenham em outras situações, e por outros motivos, agido de forma diferente anteriormente, mas isso não pode ser utilizado para se prosseguir contraproducentemente um combate contra aqueles que, por profissão, deveriam procurar onde ninguém mais procura.

Para quem se lembra do caso Profumo, já para não falar desse colosso de encobrimento governamental de crimes que foi Watergate, sabe perfeitamente que quanto menos as situações ficam esclarecidas pior é para o Estado de direito e que quanto mais cedo o responsável último das situações se demitir, mesmo que as mesmas nunca se provem, mais facilmente se poderão limitar os danos para o País. Até porque no caso do ministro britânico o crime, se é que de crime se tratou, até era bem fraquinho.

Pode parecer injusto para com o Primeiro-ministro, especialmente se se vier a provar a mais cândida inocência, mas ele e todos os responsáveis sabem que as instituições republicanas estão acima dos indivíduos, motivo pelo qual independentemente de discordar ou não das suas propostas, do seu programa, ou da sua actuação política, o que não é aceitável para o País é estar a assistir a um harakiri lento que arrasta consigo as instituições.

Perante o triste circo em que estamos envolvidos, com a incapacidade óbvia de levar a cabo um mandato sem suspeição, a questão que se põe neste momento é saber se tem ou não sentido de Estado, e se o tiver a conclusão só pode ser uma.


Original no Registo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

As chamas de Dresden



Á luz do contexto da IIª Guerra Mundial o bombardeamento de Dresden, de que se comemoram amanhã 65 anos, pode ser entendido exactamente como o justificaram as forças aliadas, como forma de baixar o moral da população alemã e a levar a não resistir ou pelo menos não apoiar activamente o governo nazi, e o seu esforço de guerra. Porém este brutal bombardeamento, que só será ultrapassado em dimensão pelo de Hiroshima, foi de facto uma carnificina de uma população civil numa cidade que o que possuía de importância administrativa, histórica e cultural, carecia de importância estratégica e militar.

O facto de a população alemã apoiar maioritariamente o partido nazi, e o Reich, não podia só por si justificar o ataque. Do ponto de vista simbólico cidades havia nas quais o apoio e cenografia nazista eram bem mais evidentes, basta pensar em Nuremberga ou em Munique. Sede e berço, respectivamente dos congressos e surgimento do partido de Hitler.

Estou em crer que aquando do bombardeamento de Dresden, era já evidente a derrocada da Alemanha nazi, e era também evidente que esta cidade ficaria situada na zona de ocupação soviética, donde o bombardeamento não visava apenas aterrorizar a população alemã, visava também criar uma situação de catástrofe humanitária e económica com a qual as autoridades de ocupação haveriam de ter de se defrontar mais tarde.

Matar assim de uma assentada dois coelhos, justificou, o suficiente, as forças anglo-americanas, para que quase sem interrupção durante dois dias fossem despejadas centenas de milhares de bombas, cujo calor transformou em gesso as pedras calcárias de igrejas e monumentos.

Na noite de 13 de Fevereiro cerca de 700-800 bombardeiros britânicos despejaram 3.000 bombas de alto teor explosivo. O mesmo número de aviões, num segundo ataque, descarregou 500.000 pequenas bombas incendiárias com o objectivo de incendiar os prédios já danificados e as condutas de gás rotas.

As altas temperaturas dos incêndios provocaram um efeito de tempestade de fogo que varreu a cidade, matando por sufocamento e dificultando o socorro às vítimas.

O número oficial de mortos foi de 35.000 o que é totalmente irrealista, dados os muitos refugiados, principalmente da Silésia, que estavam abrigados na cidade. Com base em dados e análises no pós-guerra, este número pode ser hoje calculado entre 150.000 e 300.000 pessoas. Podemos imaginar as condições horríveis em que morreram.

Este crime de guerra, pois que de outra coisa não se tratou, não vem diminuir ou justificar as atrocidades do regime nazi, nem vem diminuir ou justificar outros actos de barbárie decorridos durante este conflito, mas vem lembrar, como talvez muitos gostassem de esquecer ou apagar, que a acção da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos na guerra teve muito pouco de impoluto do que a historiografia e cinematografia nos vêm impondo há mais de 50 anos, responsabilizando sistematicamente a União Soviética pelo terror infringido à população alemã nos términos do conflito.

A sucessiva mobilização de neofascistas e neonazis, na comemoração deste acontecimento, é fruto da incapacidade dos partidos democratas burgueses em lidar com a situação, porque fazê-lo significaria reconhecer que aqueles que apresentam como exemplo de uma guerra “limpa” e que conduziu à génese da actual República Federal, estão afinal maculados por crimes de guerra, e, se calhar bem mais graves dos que são atribuídos aos soviéticos “bolchevistas”. Deixa-se assim espaço a que a extrema direita capitalize junto da população, o que do seu ponto de vista é bem melhor.

Os democratas antifascistas, que muitas das vezes estão realmente empenhados numa mudança (pese embora com análises e métodos que pouco se alicerçam na realidade e objectivo histórico de superação do capitalismo), acabam no meio disto sendo ferramentas dóceis do capital e contribuir assim para justificar e alicerçar o prestígio fascista nas camadas de classe média e desta forma ao seu crescimento eleitoral e de influência.

Era necessário, de uma vez por todas, que o acto bárbaro de Dresden fosse estudado, analisado e que a população de Dresden, da Alemanha, e do Mundo ficasse ciente dos acontecimentos e dos actos. De outra forma estaremos todos sujeitos a arder também nós nas chamas desta cidade.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Lobo…O lobo!!!

imagem originalmente no blogue pastorearley

Quando a coisa lhe corria de feição e os Portugueses lhe tinham conferido um mandato absoluto, numas eleições em que, imbuídas de uma vontade de mudança, as gentes afluíram às urnas em números não costumeiros desde o pós-25 de Abril, o Chefe do Governo, empertigava-se falando de cima a tudo e todos, comportando-se como se o mandato que fora conferido ao seu partido não fosse apenas um mandato maioritário, mas uma espécie de plebiscito eterno ou mesmo um irrevogável desígnio divino. Quem se opusesse, argumentasse, ou sequer questionasse os rumos, políticas e orientação das chamadas reformas, seria muito seguramente imediatamente fulminado, ou no mínimo transformado em estátua de sal, por inquestionável intervenção do altíssimo.
De cada vez que se ligava a televisão, se ouviam os rádios ou se liam os jornais, com raríssimas excepções tudo cantava hossanas e louvores, ao intrépido caudilho que esmagava todos quantos, acomodados no sistema, teimavam a em não dar de barato o seu direito ao descanso, a uma progressão na respectiva carreira, a assistência à sua família, resistia a avaliações de dignidade mais que duvidosa, e ainda pugnava por melhores condições de trabalho e de vida.
O vento que varreu o Parlamento e levou consigo a maioria, redistribuindo as relações de forças, deveria ter sido lido como um sinal político para o Senhor de S. Bento. Contudo aliada à arrogância o dito cujo possuía também uma miopia assombrosa, donde não conseguiu ver, ou não podia ver, o que entrava pelos olhos dentro de qualquer um, que teria de encontrar parceiros a sério para governar. No caso, e tendo em conta a tendência de perda do seu eleitorado, a esquerda.
Porém não só não foi isto que se passou, e o Governo privilegiou em tudo o que era essencial a direita. Como resultado, e com excepção dos professores, não só não aliviou tensões sociais e laborais, antes as agravou, como se fragilizou politicamente, cedendo mais ainda à direita e aos interesses que esta defende, não lhe restando espaço de manobra para recuar. Ou seja, alienou de uma assentada, os partidos à esquerda, parte importante do seu eleitorado, e até mesmo uma futura influência presidencial, depois que o único candidato em campo afirmou que não é candidato de nenhum partido, sem ganhar nada à direita, onde sem acabar a metamorfose em que há anos entrou, não pode almejar a ocupar o espaço, mesmo com a noite polar das facas longas que grassa dentro do maior partido da direita.
A vitimização a que recorre de cada vez que se apresenta um revés, ameaçando a demissão, quer velada, quer abertamente, lembra mais do que circunstancialmente a história do pastor que gritava lobo, pondo em polvorosa, em vão, toda a aldeia. No dia em que o lobo vier já ninguém acredita. E da maneira como vão as coisas se calhar o povo ainda agradece, aclama o lobo e o convida a formar governo. A ver vamos.


texto originalmente em "Registo"

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A Participação Pública e a Luta das Populações



A origem da palavra público está intimamente associada com a da palavra povo, donde a ideia que a participação se pode fazer separando as opiniões dos anseios e aspirações populares, ou das suas lutas, não é apenas insensata, é a tentativa de utilizar ferramentas que deveriam ampliar a expressão da vontade popular, para limitar e enfraquecer a própria dinâmica das lutas e reivindicações.
A distorção dos resultados entre a participação realizada através da reivindicação e a obtida por processos institucionalizados é fruto da diferença entre verdadeira participação e simulacro manipulado ou manipulável, cujos resultados estão à partida determinados ou são largamente previsíveis.
A luta pela melhoria do sistema de transportes públicos, que tem início com a primeira reestruturação da rede da Carris, pese embora as importantes consequências sociais desta reestruturação, desenvolveu-se muito lentamente, tendo tardado um pólo que organizasse e federasse os descontentamentos que foram surgindo em toda a Cidade.
Este compasso de espera foi gerado pela expectativa de uma reacção institucional aparentemente hostil a esta reestruturação e criou dificuldades acrescidas na acção. Assim a mobilização decorreu separadamente, sendo que apenas a segunda fase desta reestruturação permitiu unificar quatro comissões de utentes, com enraizamentos diversos, e o apoio de mais algumas comissões de utentes na cidade.
A reacção, e recusa por parte da CML em dialogar ou sequer reconhecer a Entidade formada a partir da base, criou dificuldades que, não obstante, permitiram a obtenção de algumas alterações aos planos iniciais da Carris.
Da mesma forma, as lutas pela preservação dos grandes espaços verdes, embora agregando populações locais respaldadas por Associações Ambientalistas, vem enfrentando uma reacção crescente por parte da CML, que se traduz neste caso não na falta de reconhecimento, pese embora também suceda em certos casos, mas em grande medida na tentativa de desacreditação e mistificação falaciosa dos argumentos apresentados, recorrendo aos meios de comunicação social e a autoridades na matéria em larga medida comprometidas com os projectos em causa, escamoteando contudo essa condição.
Joga em favor desta luta a capacidade de mediatização das associações, que expõe publicamente o facto do poder instituído ter vindo a ser muito mais reactivo, demonstrando em relação às diversas plataformas uma hostilidade muito evidente, motivando uma maior resistência e portanto uma mobilização crescente e mais crispada.
Resultados obtidos aparentemente superiores, com o abandono de diversos projectos, têm no entanto conduzindo à substituição de cada projecto abandonado por outro de natureza similar, produzindo um combate desgastante e prolongado no tempo, cujos resultados finais são incertos.
No extremo oposto, o orçamento participativo, cujo modelo adoptado subverte a participação efectiva da população, limitando-a e diminuindo-a, vem sendo alcandorado a expressão de exemplo da gestão transparente e participada. No entanto, e o orçamento participativo da Câmara Municipal de Lisboa é paradigmático deste sistema, a participação não só não é universal, limitando-se aqueles que tem acesso à internet, explicito na votação de cerca de 900 cidadãos, menos do que os inscritos numa só mesa eleitoral de algumas freguesias, como facilmente se verifica que pequenos, mas bem organizados lobbies podem, nestas circunstâncias, determinar uma parte importante da política urbana, sem sequer a garantia que venha a ser sequer avaliada a exequibilidade ou pertinência das propostas eleitas – veja-se como exemplo o primeiro orçamento participativo, em que a tentativa de concretização dessas propostas conduziu em muitos casos à contestação local organizada, como no caso da ciclovia em Alvalade cuja conclusão ficou adiada em virtude do abaixo-assinado e conferência de imprensa local, desenvolvida pelos elementos da CDU em consonância com as populações.
Na mesma linha se encontram as reuniões descentralizadas que, de acordo com a propaganda local, levam a uma maior aproximação dos eleitos às populações, mas que são de facto uma falácia alicerçada na falta de clareza dos critérios utilizados na inscrição dos intervenientes, não dando, efectivamente, respostas de trabalho aos problemas concretos. Estas reuniões limitam-se assim a um papel de catarse pública em relação à actuação da CML, o que sendo de boa visibilidade em termos mediáticos, é pouco procedente na solução dos problemas dos cidadãos.
Não se pode no entanto dizer que quer um modelo quer outro não apresentem virtudes que poderiam ser utilizadas em prol da população. Universalizando-se a participação no orçamento com debates públicos, informação e divulgação local, e veja-se o processo de orçamento participado de Carnide, ou realizando reuniões locais, após trabalho aturado de identificação dos problemas, podendo-se promover uma politica de proximidade participada, minorando ou mesmo eliminando a interferência de grupos de pressão ou a manipulação das soluções encontradas.
Tal como estão, estes modelos de participação servem apenas para iludir, manipular expectativas e impedir a concretização dos anseios das populações locais.


Intervenção originalmente apresentada no Encontro do PCP sobre o trabalho autárquico no Distrito de Lisboa - Fórum Lisboa - 30-I-2010

As pedras e o céu

Foto do blog de duas igrejas

Diz a história que o famoso químico francês Lavoisier, afirmou um dia que não caiam pedras do céu, porque simplesmente no céu não há pedras. Não só as evidências, como os cientistas seus sucessores, provaram cabalmente que elas não só existem, como de vez em quando caiem mesmo na terra.
Lavoisier, que devido ao ódio popular que lhe havia granjeado a construção de uma muralha ao redor de Paris, protegendo a cobrança de impostos, mas tornando ao mesmo tempo empesteado e malsão o ar na cidade, já tinha sido guilhotinado há muito e infelizmente nunca veio a saber que de facto elas caem.
Quem veio lendo as notícias dos jornais referentes à actuação da Câmara Municipal de Évora no que diz respeito à qualidade da água, leu certamente que o descrédito desta administração é grande não obstante o pouco tempo que leva ainda de mandato.
As contradições, incongruências e falta de rigor técnico, com que responsáveis do Município e das Águas do Centro Alentejano, prontamente desmentidas quer por técnicos quer pelos ambientalistas, mostram que a cegueira e a incapacidade de se fazer uma gestão voltada para as pessoas é a realidade que campeia e que, no limite, para defender um modelo empresarial de gestão da água, as populações e o seu bem-estar são quem menos conta.
Há pouco tempo, neste mesmo jornal, alguém equiparava a “máquina municipal” (na generalidade), donde também a gestão municipal dos recursos, se é que entendi bem, a fungos, com micélios e hífas, desenvolvendo-se como parasitas ou saprófitas no meio de cultura que é o próprio Município. Porém esqueceu-se de dizer que além de muitos destes fungos serem os deliciosos cogumelos com que nos deleitamos, são muitas outras vezes fonte de antibióticos, sem os quais há muito teríamos sucumbido às infecções.
Pelos vistos, infecções essas de empresas, às quais se passa sem problema áreas tão importantes da administração autárquica como a gestão de resíduos, a manutenção dos espaços verdes, a gestão cultural ou o tratamento e distribuição da água, e se descobre no fim que são caras, ineficientes e absolutamente centradas nos seus lucros e não no serviço à população.
No caso em apreço foi a água, a tal cheia de alumínio que só poderia ali ter vindo parar pelo processo de coagulação-floculação, e nunca por natural presença nas águas. Donde se depreende que por apresentar demasiada matéria orgânica, se adicionou hidróxido de alumínio até a água se apresentar sem turbidez. No tratamento mais barato, sem dúvida, mas cujos reflexos são exactamente os que se verificaram. Até que me dêem uma explicação melhor e no minimo aceitável (e não qualquer uma), arrogo-me o direito de pensar que foi o que sucedeu.
Como da água não sai alumínio, contrariamente às pedras do céu, porque simplesmente não existe lá nessas quantidades, aos responsáveis carece ainda assumir as responsabilidades técnicas e políticas da situação. Espero que, pelo menos, Lavoisier tenha perdido a cabeça com mais dignidade.


original publicado no Registo