quinta-feira, 29 de junho de 2023

Gente que olha mas não vê

As notícias dos tumultos nos arredores de Paris (Nanterre como foco) mostraram-nos como vivemos na ilusão de uma calma, que é a todos os níveis um embuste de uma sociedade democrática e tranquila. 
É verdade indesmentível que tudo começou com o assassinato de um menor de 17 anos, negro, às mãos de um polícia que, já se verificou que mentiu ao alegar legítima defesa. Só que a questão é bem mais profunda do que isso, ou não teria desencadeado a onda de violência sobre os símbolos da República Francesa. Indica que uma parte significativa das populações dos subúrbios pobres não se identificam já com os valores desta república e se sentem tolhidos e oprimidos nas suas aspirações.
O facto de ser um negro é por este ser aos olhos de uma polícia de regime o simbolo de uma população que está contra ela e um símbolo facilmente identificavel, por os negros serem maioritários entre as populações excluídas e impossibilitadas de poder dar uma resposta à satisfação das suas necessidades, especialmente por serem empurrados para os trabalhos mais desqualificados e mal pagos, esses que com a inflação que se instalou deixaram até de conseguir fazer face às questões mais básicas e que, segundo a Senhora Lagarde (curiosamente francesa e da elite que sustem estes valores) considera culpados pela inflação por terem recebido um insignificante aumento que não cobre o seu poder de compra.
No seu afã de voltar trabalhadores contra trabalhadores e dividir para reinar, as elites mantiveram também as polícias sob condições miseraveis de desempenho das funções sociais que lhe estão atribuídas, criminosamente descurando a sua formação cívica, mas passando-lhes uma arma para a mão, e otorgando-lhes a cobertura de um poder, que só poderia terminar com uma actuação brutal que aligeira frustrações sobre um suposto inimigo que os faz sentirem-se inseguros e intimidados também, por serem eles próprios simbolos de uma república cada vez mais desfasada nas necessidades de uma significativa parte dos cidadãos.
Quem tiver lido Rosa Luxemburgo, compreende perfeitamente que estas condições são as ideais para o surgimento expontaneo de acções que visam mudar o estado de coisas, mas também compreendem que sem existir uma força que faça a súmula dessas reivindicações, as possa cerzir num objectivo comum, e as oriente na acção (tal como preconizava Lenine) esse luta é incapaz de confluir numa tomada organizada do poder.
As elites sabem bem disso e por isso esforçaram-se, e ainda esforçam, para garantir o silenciamento - antigamente através da directa repressão física, hoje sob o isolamento mediático, num processo de quase exílio interno - das forças que ideologicamente poderiam dar organização e direcção a essas lutas.
Porque se voltam contra esquadras, escolas e autarquias? Porque são estes os pilares da manutenção dos valores e dominação desta república com a qual já não são capazes de encontrar pontos de contacto. Não orientaram a sua fúria contra os meios de comunicação porque o seu grau de alienação está já para além desse ponto, nem contra a igreja porque esta já não é hoje a detentora do poder sobre o sistema de educação que foi no passado. Não obstante é óbvio o ataque sobre os pilares da dominação social, tal como Gramsci os havia identificado.
Em França porque o grau de exploração não conseguiu ainda abafar uma certa tradição histórica de contestação social e a situação se agudiza mais, especialmente na falta de uma organização dos trabalhadores que oriente a luta, mas pode fácilmente acontecer em determinadas zonas de Itália, Alemanha, Espanha, e mesmo Portugal ou o Reino Unido. 
Em Portugal o mal estar e o conflito latente nas periferias é evidente, a procura de enfraquecimento das organizações de classe e do Partido Comunista é óbvia, a alimentação da Extrema direita e a facilitação da sua penetração nas forças de segurança - aliadas a depauperação das condições de existência dos seus elementos - está mais do que identificada. Mantem-se ainda uma confiança no sistema escolar - porém a esbroar-se rapidamente - e no sistema representativo, embora esvair-se também sob o peso da venalidade e a arrogancia dos que deveriam ser representantes dos interessas das populações.
Pelo meio temos as declarações de governantes supra-nacionais como agora a Sra. Lagarde que, pensando estar adiante de um exército de ocupação e submissão dos povos, declara alto e bom som algo que além de ofensivo toda a gente, pela sua experiência pessoal, sabe ser mentira. 
Depois dos Brioches por Pão, não terá muito do que se queixar.