Este artigo foi públicado n'"A Voz do Operário"
Quando, há pouco mais de uma centena de anos, Victor Hugo escreveu que “entre um governo que faz mal e um povo que o consente há sempre uma espécie de cumplicidade vergonhosa”, seguramente estaria longe de pensar que esse seu desabafo se aplicava com notória actualidade ao Portugal de 2011. É de crer que esse homem, que tanto admirava o nosso país, em virtude do pioneirismo na abolição da pena capital, se desiludisse profundamente face à subserviência do nosso poder executivo em relação aos governantes e capitais estrangeiros, e, mais ainda se desiludisse por, em sufrágio directo e secreto, o eleitorado português continuar a sufragar as políticas de subordinação aos interesses externos. O fim do Governo PS-Sócrates, que há muito se adivinhava, só não aconteceu anteriormente porque em sucessivos Planos, eufemísticamente denominados de Estabilidade e Crescimento – Como se fosse expectável esperar alguma forma de crescimento económico quando se cortam salários, regalias e benefícios sociais, no fundo bases da capacidade de consumo e de aumento de produtividade, o que no sistema capitalista são, junto com a capacidade de transformação e disponibilidade de recursos, as condições sine qua non do crescimento. Capacidade de transformação que o país já não tem graças aos Governos PSD-Cavaco e recursos que foi também tratando de desbaratar ao longo dos últimos anos, pelas mãos dos vários Governos de “alternância” – o PSD foi aprovando e com isso, às ordens dos mercados, assumindo um papel activo na governação do país e dos pesadíssimos sacrifícios impostos às classes trabalhadoras, aos jovens, aos reformados e pensionistas, sendo também agente na hipoteca do futuro do país. No epílogo da história do Governo Sócrates, o PSD invocou a sua indisponibilidade para continuar a “pedir sacrifícios” aos portugueses, para colocar o Primeiro-ministro na insustentável situação de enfrentar a Comissão, o Conselho e os seus pares da União Europeia, sem os resultados de mais um passo no desmantelar do Estado Português, ou se demitir. É claro que para tanto tem a perfeita consciência que a estes pouco lhes dá qual o partido de suporte do Governo, desde que as medidas de austeridade aplicadas sejam exactamente as mesmas ou, no mínimo, contribuam para o mesmo fim, com eficiência similar. Resulta também claro que o PSD o faz por ter perdido margem de manobra em relação à acção governativa, face ao descontentamento crescente das massas, que jamais compreenderiam um novo entendimento à volta do PEC. Não deixa contudo de ser paradigmático que o líder do PSD venha, no dia seguinte a ter-se recusado pedir mais sacrifícios aos portugueses, anunciar que com ele o IVA – esse imposto que por recair de igual modo sobre ricos e pobres era extremamente injusto, nas palavras escritas pelo próprio – subiria para obter as tais receitas com que tem de agradar ao Capital internacional. Não deixa de ser paradigmático também sobre quem serve este partido e o seu líder, que comunicados sobre a situação nacional sejam feitos em língua estrangeira, para que os mercados se possam rever nas intenções e lhes abram o caminho do poder, como também o são as garantias dadas por Passos Coelho ao Presidente do Conselho Europeu Claude Junkers que um hipotético Governo do PSD aplicaria as orientações e premissas do PEC IV, que acabava de rejeitar no Parlamento. Apesar da atitude do PSD ter sido ditada pela ânsia de substituir o PS na governação e não para promover nenhuma alteração do rumo seguido, bem pelo contrário tendo a atmosfera certa e propõem-se até reforçar as características mais negativas da governação seguida, o facto da Assembleia da República ter sido dissolvida devolve a possibilidade do eleitorado alterar a correlação de forças permitindo forçar novas políticas e, também um governo que fale com os dirigentes da UE com uma outra voz. É perfeitamente claro não obstante que a transformação da insatisfação social, de que as recentes manifestações são sinal, não é uma processo nem fácil nem imediato. É óbvio que não é fácil subverter anos de dominação psicológica, efectivada pela manipulação das diversas formas de informação e, não menos importante ou frequente, através dos conteúdos curriculares na educação. Porém nem mesmo isso pode justificar que se venham a verificar os resultados por alguns propalados, mesmo sabendo a forma como surgem. A quebra dessa espécie de cumplicidade vergonhosa que radica no preconceito, no medo, na incapacidade de acção, na desconfiança semeada pela mentira e finalmente nas cadeias que escravizam a vontade pela dominação do pensamento é então a tarefa fundamental e uma das principais ferramentas da mudança. O 25 de Abril de 74, e o período de transformações que se seguiu, mostraram cabalmente que é possível, apesar dos atavismos históricos e dos condicionalismos sociais, promover alterações profundas nas formas de pensar, libertar mentes e vontades, pôr fim aos dogmas ideológicos dominantes com especial ênfase para o ensino, e assim alterar significativamente as relações de trabalho e condições de produção aos vários níveis. Daí que as celebrações do 25 de Abril e 1º de Maio deste ano, e especialmente em vésperas de eleições, têm de colocar a ênfase nessa transformação e nos benefícios que delas resultaram para as populações de uma forma duradoura ainda que duramente atacada nas últimas décadas. É necessário mudar, é necessário transformar esta realidade. O governo da nossa vergonha só o é se consentirmos a sua governação.
Sem comentários:
Enviar um comentário