domingo, 4 de abril de 2010

O País que temos, o País que queremos




A propósito do Plano de Estabilidade e Crescimento, tenho visto, em diversos órgãos de comunicação social, os mais diversos cronistas dizerem e escreverem coisas que, pese embora façam muito sentido para mim, não cessam de me deixar boquiaberto. Durante anos, senão mesmo décadas, a fio os mesmos cronistas disseram coisas que vêm no sentido inverso das suas actuais posturas e foram, muitas vezes, a tracção necessária para que o nosso povo acabasse por aceitar e sufragar projectos que era mais do que evidente não serviam o seu interesse.
O País que temos tem um tecido produtivo que se era incipiente à altura do ingresso nas Comunidades Europeias, está hoje completamente destruído. Coisas como produção siderúrgica, mineira, naval, outrora grandes símbolos do pouco avanço em algumas áreas, são hoje meras lembranças do passado. As pescas, não obstante os riscos claros de frotas anquilosadas e da falta de formação, representavam um sector produtivo de grande relevância, que abastecia a indústria das conservas, fazendo do país um dos líderes, senão mesmo o líder, da sua exportação.
É um facto que a nossa agricultura sofreu sempre de um atraso sistémico, em grande parte devido ao dimensionamento da propriedade e à falta de inovação tecnológica. Mas a verdade é que apesar de todos esses atrasos à altura da integração e, apesar da decadência subsequente, as reservas de produção nacional conseguiam garantir o fornecimento em caso de crise acentuada, donde eram estratégicas. Depois do advento da Política Agrícola Comum, não mais isso foi possível.
Não quer isto dizer que no antigamente é que era bom, nem de perto nem de longe. As precaríssimas condições laborais, os baixos salários, a ausência de direitos ou regalias sociais, o arbítrio dos patrões, a ausência de força negocial, repressão. Tudo isso implicava que tínhamos um modelo de desenvolvimento baseado no baixo custo de mão-de-obra, com uma formação muito baixa, com quase ausência de introdução de novas técnicas e inovações. Canalizando por fim para o patrão (investidor) a maioria dos ganhos, em detrimento do trabalhador (consumidor). O que diga-se de passagem originava um mercado interno débil e uma dependência do exterior, forçando a uma produção quase exclusivamente dedicada à exportação.
Contudo, por estranho que pareça, foi este o modelo que continuou a ser praticado pelos sucessivos Governos Constitucionais. Mão-de-obra barata, com baixo nível de formação, maquinaria antiga, por vezes quase ao nível da obsolescência, produção virada para o mercado externo. Só que isto esbarrava continuamente com os direitos sociais conquistados numa altura histórica específica, o PREC, com o desejo de melhores condições de vida e padrões de conforto dos trabalhadores, com o poder negocial dos sindicatos, e com a diminuição do analfabetismo.
Iniciou-se então uma guerra, muito inspirada pela actuação da Sr.ª Tatcher no Reino Unido, na qual se procurou limitar o poder negocial dos sindicatos, diminuir o alcance social de direitos determinantes, como diminuição de horários e tempo de descanso, aumento do trabalho precário, protecção contra despedimentos arbitrários, acesso gratuito a saúde e educação, e de forma particularmente insidiosa, atirando com a força de trabalho para as periferias, distantes dos seus locais de trabalho, atingindo com isso a socialização e a discussão dos seus problemas em grupo, o que era normalmente feito nas colectividades culturais, desportivas e recreativas, que foram gradualmente fenecendo.
Ao mesmo tempo, a qualidade do ensino público foi, e continua a ser, gravemente afectado, quer pelas sucessivas reformas curriculares, quer por se ter deliberadamente consentido na perda de dignificação e valorização da carreira docente, valor social da escola, e mesmo pela criação de guetos sociais e culturais aos quais a única resposta que foi dada foi a importação de modelos de expressão de revolta, sem a preocupação de respostas construtivas.
O resultado destas políticas é não só expresso no crescimento das atitudes individualistas e isolacionistas, mas também no medo crescente da perda do posto de trabalho, do desconhecimento dos direitos laborais e aumento dos fenómenos de analfabetismo funcional, e criminalidade.
Por isso quando leio, ou oiço, que o modelo de crescimento baseado nos baixos salários está esgotado, ou que se mostra necessário por travão a privatizações insensatas, ou que o PEC propõe que sejam os mesmos a suportar a factura da crise, enquanto que os sacrifícios pedidos ao sector financeiro são insignificantes, não posso deixar de me questionar da responsabilidade de quem assim fala na construção do País que temos, e naquilo que foram sempre dizendo a quem afirmava que não é este o País que queremos.

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