domingo, 11 de abril de 2010

A violência das margens



Quando o desconhecimento se espalha e a manipulação da realidade assume foros de verdade, substituindo definitivamente aos olhos dos cidadãos os acontecimentos. Quando o silêncio de uns e exacerbação de outros acontecimentos conduzem à ignorância controlada por aqueles que pretendem moldar os dias à vontade do seu domínio e da sua capacidade de arrecadar os proventos da exploração dos recursos e da transformação dos mesmos pelo factor trabalho

As lutas que se travaram e travam pela liberdade dos povos, pelo justo acesso aos recursos dos lugares onde vivem, por melhores condições de trabalho, pelo reconhecimento e dignidade cultural, debateram-se sempre com uma violência que não é, nem foi, noticiada em jornal algum. Uma violência que silenciou e deturpou a história das suas razões e reivindicações. Que calou os mortos, os torturados, os violentados, de prestar o seu testemunho perante os povos e história. Uma violência que é exercida todos os dias em que algumas “vítimas” são alcandoradas à condição de massacrados e vítimas de genocídio e outras são lestamente apagadas da memória. São estas que hoje falarão.



Saúdo os combatentes da Comuna de Paris. Esse formidável sonho, que pela primeira vez na história deu direitos de decisão e de organização, aqueles que trabalhavam sob condições duríssimas, sem qualquer direito ou regalia, sem qualquer condição de segurança ou assistência na velhice ou na doença, que, para que a sociedade sentisse os benefícios dos avanços tecnológicos, colocavam a sua vida e a sua saúde em risco. Quando escrevo estas linhas não consigo deixar de me lembrar das operárias das fábricas do chumbo branco, em que a única forma de se desintoxicarem era engravidar, abortando espontaneamente em seguida, devido à concentração do chumbo no feto. Onde estava então a sacrossanta família de que alguns hoje falam? Ou onde estava o reconhecimento do direito de escolha democrático, sempre tão alardeado, quando, ao entrarem em Paris, as forças revanchistas fuzilaram trinta mil Communards? Que falem os partidários da Comuna, pois que por muito foram silenciados.













Communards fuzilados


Saúdo os combatentes irlandeses do Levantamento da Páscoa de 1916, que sacudiram o jugo colonial do império Britânico, sendo rechaçados, perseguidos e mortos, tendo o destino de milhares de outras vítimas da dominação do império, que procurou trucidar a sua cultura, apropriar-se dos recursos da sua terra e que não hesitou em submeter à fome milhões de pessoas, sendo que três quartos da população irlandesa pereceram, sem que nunca o Império Britânico fosse acusado de genocídio, nem analisadas e julgados os seus procedimentos.
O mesmo império que, bem recentemente, não só praticou as piores violências sobre os presos irlandeses, não tendo querido sequer dialogar com os grevistas de fome por melhores condições na prisão, conduziu à morte de Bobby Sands e nove outros prisioneiros na prisão de Maze. Nessa altura aquilo que se encontrou, nos governos e meios de comunicação, foi apoio ao governo do Reino Unido, bem ao contrário do que acontece hoje em relação a outros grevistas da fome. Que falem os Patriotas irlandeses, pois que muito foram silenciados.




Mural do levantamento da Páscoa



Chamo também a prestar o seu depoimento os desaparecidos da Guerra Civil de Espanha, enterrados em valas comuns espalhadas por todo o país, que permaneceram desconhecidas durante mais de 70 anos e que, não fora a persistência dos seus familiares, aí permaneceriam por muito mais tempo, perante a passividade cúmplice de uma “democracia” e de instituições que, alegadamente são o garante dessa mesma democracia”. É bom lembrar que bem recentemente muitos houve que, até aqui em Portugal, se mostraram contra a lei da memória histórica, e que a mesma não tocou nos veredictos dos tribunais franquistas, anulando-os, e mesmo agora o sistema legal tenta punir quem quer investigar os crimes do franquismo. Crimes que deveriam ser investigados mesmo que a sua punição seja impossível. Falem também estas vítimas, pois que não cessam de as tentar calar.



Fuzilados em Badajoz



Nesta sessão de chamaria também todo o povo Sarauí. Esse povo que vive sob ocupação estrangeira, ou em campos de refugiados. Uma ocupação que tentou colocá-los como minoria na sua própria terra. Que procura obliterar a sua cultura. Que tenta por todos os meios apropriar-se dos recursos existentes. Que não se coíbe em utilizar as piores torturas e humilhações contra quem levanta a sua voz em defesa do seu povo.



Não é hoje segredo que, com a conivência dos governos e dos órgãos de comunicação, que o Reino de Marrocos utiliza e utilizou diversas formas de prisão, tortura, desaparecimento, recorrendo inclusivamente à dissolução dos corpos em ácido sulfúrico para que nunca mais possam testemunhar contra a violência que foi perpetrada.

A recusa de negociações sérias, a chantagem utilizada sobre a população que permanece no território, o terror exercido sobre as famílias de activistas e de desaparecidos, a repressão policial, os números de militares destacados no território, o muro construído para separar as zonas ocupadas do restante território, também estas, violências exercidas sobre uma população inteira deste 1974. Deponham também os sarauis.



Presos sarauis na Prisão Negra de El Aiún




Muitos mais terão ainda de falar. Todos aqueles a quem tentam apagar da história e tentar que não sejam lembrados. Que ninguém diga depois que o Rio é violento.






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