quarta-feira, 21 de abril de 2010

Acabaram de falar do leite?


Rafael Bordalo Pinheiro


Este artigo é previsto sair na Edição do Registo mas se não sair, fica já aqui





Quem teve a ventura de assistir ao vídeo da intervenção da deputada carioca Cidinha Campos na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro, não pode deixar de sentir a sua alma lavada pelo desassombro com que a parlamentar brasileira punha a nu os desmandos dos candidatos ao tribunal de contas do estado, mas também como expunha os conluios e cumplicidades que, por um motivo ou por outro, se vão tecendo com os restantes membros do parlamento, ou pelo menos parte destes.
Não pude deixar de me lembrar desta cena quando tomei conhecimento que o novo líder do maior partido da oposição toma por principais cavalos de batalha a alteração da Constituição, no que diz respeito às leis eleitorais, e a privatização das empresas públicas que restaram após o desvario privatizador dos anos noventa, nomeadamente a RTP e a ANA.
O passado recente demonstrou à saciedade, especialmente para aqueles que não tendo certeza se arregimentaram na horda dos que a pés juntos garantiam que as empresas privadas funcionavam muito melhor que as públicas, o quanto o argumento era falacioso. Hoje os transportes colectivos não funcionam melhor; Não temos sistemas de comunicações baratos e satisfatórios; A nossa banca vive de impostos baixos e favores do Estado, quando não de golpes praticados sobre os clientes, o mesmo podemos dizer dos seguros; Ninguém põe a mão no lume pela isenção e independência dos meios de comunicação face ao poder económico; As suspeitas de corrupção grassam.
Na mesma onda estão os órgãos onde o poder é exercido com grande pendor pessoal: Os autarcas suspeitos ou mesmo condenados são candidatos amplamente votados ou reeleitos aos lugares; o fenómeno do caciquismo é uma realidade gritante; lugares há no país em que os pequenos poderes económicos dominam e determinam a política e a vida local, determinando vencedores eleitorais ao prazer da satisfação dos seus interesses.
É neste quadro que o líder do maior partido da oposição defende a privatização de empresas que garantem a funcionalidade do Estado, quer por darem lucros, como o caso da ANA ou dos CTT, quer por servirem para garantir um serviço que deveria estar virado para a cultura e o ensino, e mesmo garantir a pluralidade e isenção, como a RTP, que só não o faz porque as sucessivas direcções têm combatido por dentro a função social da empresa. Situação que uma privatização só agravaria.
Mas não é o bastante, propõe-se também passar a círculos uninominais, reduzir os deputados, e seguramente avançar para os executivos autárquicos monocolores, sufocando assim a democracia ao reduzi-la a um poder de dois, contribuindo para o proliferar de caciques e caudilhos locais nas legislativas, à imagem de alguns dos actuais Presidentes de Câmara, que não deixariam de ter a sua prenda livrando-se do controlo da oposição nos executivos. Resumindo e concluindo, criando as condições para o fartar vilanagem, entre um poder económico detentor de todos os meios e um poder político pouco representativo e completamente a ele ligado.
Li hoje, numa carta a um jornal, a ideia que vivemos hoje na ditadura de uns quantos que impõem uma lista num círculo. Não sendo o maior defensor da democracia representativa, prefiro saber que sou representado por um qualquer deputado da lista em que votei, do que ter por representante alguém em que não me reconheço, em quem não confio, e que seguramente jamais irá ser sensível às minhas preocupações e aspirações, apenas por ter sido eleito por uma maioria de votos, valendo os votos dos outros que perderam, nem que por um voto fosse, zero. Chamar isto de democracia toca as raias do insulto.
Estas propostas, que também não são mais do que as propostas várias vezes avançadas pelo próprio partido do Governo, irmanam então estes dois partidos em novas tentativas de transformar o país num bolo a repartir pelos interesses e clientelas de uns e outros, onde estejam de mãos livres, longe do controlo e denúncia de terceiros, para mamar à vontade.
Acabaram de falar do leite? É que eu quero falar dos que mamam!

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