segunda-feira, 1 de março de 2010

A História e os Torrões



Dizia-me, há muitos anos, a minha avó, que uns ficavam com os nomes nos livros de história e os outros debaixo dos torrões sem história nenhuma. Quem tenha assistido nos últimos dias à estranhíssima contabilidade de baixas, ocorridas na tragédia das enxurradas na Madeira, entenderá aquilo que digo. Os números oficiais mantiveram-se, contra todos os indícios, em 42 mortos, com a indicação oficial do Governo Regional que assim era porque apenas eram contabilizados os óbitos confirmados pelo Ministério Público. Até que…alguém os decidiu encolher para 39, e os 42 passaram à condição de estimativa. Pelo meio entre os já sepultados e os na morgue, esse número já havia sido ultrapassado.
É particularmente doloroso tudo o que se passou, mas é tenebroso jogar com as vidas ceifadas para proteger que espécie de negócio seja, por muito que este seja a principal fonte de rendimentos local, ou ainda para diminuir e tentar esconder erros que eram notórios para todos.
Especialistas, profissionais da matéria e até os moradores, que bem podem não ter formação académica mas sabem de vivência própria, eram unânimes em apontar os erros urbanísticos da impermeabilização dos solos, do estrangulamento dos leitos das ribeiras e até da sua ocupação, como riscos iminentes de catástrofes futuras, tendo até em conta a orografia, a geologia e o histórico recorrente de enxurradas destruidoras. Porém tudo foi classificado como “canalhices de gente sem um pingo de vergonha na cara”, que desejava fazer política com a tragédia alheia. Está à vista o resultado.
Mas não há razões para atirar pedras. A realidade mostra, com uma clareza de cristal, que nada há no ordenamento do território Madeirense, que não se passe também no resto do país. Na vastíssima maioria dos PDM’s, impermeabilizou-se, ocuparam-se leitos de ribeiras, invadiram-se solos agrícolas, ignoraram-se áreas de protecção, descurou-se a limpeza de ribeiros, etc, etc, desde o momento que o solo e a sua ocupação se tornou fonte de ganhos e mais-valias, e só o facto de as orografias serem diferentes e não ter acontecido uma pluviosidade desta intensidade, impediu que sucedessem tragédias do mesmo, ou maior, calibre. Resta saber até quando.
Como para muitos dos que mandam, com ou sem o beneplácito das populações, é de maior monta ficar com o nome gravado nos livros e placas de praças e ruas, do que cuidar para que as tragédias nunca aconteçam, não admira que depois se “limitem” as baixas e que muitos outros acabem mesmo por baixo dos torrões sem história alguma.

originalmente in "Registo"

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