domingo, 24 de janeiro de 2010

O Laço e o Cravo


Aqui há anos atrás a saudosa Ivone Silva criou uma magnifica rábula que tinha como mote: “Com um simples vestido preto…eu nunca me comprometo”. A certo ponto dessa rábula afirmava ela que à direita punha um laço, por causa das alianças, e à esquerda punha um cravo, que lhe trazia outras lembranças. Não é a primeira vez que me lembro desta rábula, mas de todas as vezes parece bem aplicada ao partido que é suporte do actual governo.
Fazendo sempre alarde de políticas de esquerda, e principalmente fazendo grande alarido de medidas a que normalmente se associa uma actuação de esquerda, especialmente aquelas que sem grande alcance social levem a grandes manchetes de jornal e horas infindas de noticiário televisivo, o governo e a sua base partidária vão cimentando uma imagem de esquerda civilizacional à qual não corresponde a sua prática diária.
As negociações do novo Orçamento de Estado vieram demonstrar, cabalmente e para grande espanto de quantos se enlevavam pelo acordo com os professores ou pela novela do casamento gay, que, no que diz respeito à distribuição de riqueza, aos direitos dos trabalhadores, às questões fiscais, nomeadamente o esforço do pagamento especial por conta das micro e pequenas empresas, esta “esquerda” se entende muito bem com a direita e com o aval de uns e a abstenção de outros constrói-se uma bela aliança que permite prosseguir políticas de encerramento de serviços públicos, alargamentos de horários, benefícios fiscais para os sectores financeiros, beneficiando claramente quem mais acumula em detrimento de quem mais precisa.
No meio disto tudo quem vê a causa mas esquece a consequência, afanado que está em dirigir uma frente constituída por coisas que lá não estão, sai atrás do batalhão mal lhe chega um vago som de trombeta, que lhe diz que o governo e seu suporte farão, com ele, coro numa qualquer candidatura presidencial. Se por acaso, e este acaso depende grandemente da percepção que este governo vier a ter da conotação da sua governação, o candidato presidencial do governo e do seu partido pode bem ser outro, e lá vão os cravos e as esquerdas plurais às urtigas.
Ensina-nos a história, e já nem tão recente assim, que, pese embora com uma base sociológica que se identifica à esquerda, há muito que a actual maioria não propõe, promove, ou concretiza políticas de esquerda. Os principais objectivos económicos e acções, com ênfase no princípio da sujeição da sociedade à economia, demonstram que não existe correspondência entre o seu discurso e actuação e que procurar de forma activa uma acção ou posição comum, no pressuposto de que se podem criar pontes ou elos, é uma ideia tão seráfica quanto mirífica. Estes são no essencial, constituídos entre este governo, e a sua maioria, e os partidos de direita.
Uma política de esquerda que o seja de facto não surge portanto assim. Não é uma soma de votos, não é um repartir de lugares, não é um agitar de encenações. Uma política de esquerda surge da discussão aturada das várias propostas programáticas, do delinear de objectivos de sociedade, do conciliar das diferentes metodologias e estratégias entre as várias forças em presença e da perseverança numa acção que satisfaça esses objectivos. Tudo o mais é olhar a realidade com “óculos de ver ao longe, com lentes de ver ao perto”.

originalmente no Registo

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