“Não são os teus bens que distribuis aos pobres, mas apenas lhes restituis o que lhes pertence. De facto, tu usurpas o que foi dado a todos para uso de todos. A Terra pertence a todos e não aos ricos. Contudo ela foi tomada por alguns em detrimento de todos os que a trabalham. Assim, estás a pagar uma dívida, o que é bem diferente de dar esmola de forma gratuita.”
S. Ambrósio de Milão (bispo e doutor da Igreja, séc. IV)
Com a quadra do Natal multiplicaram-se apelos à solidariedade das populações em relação em aqueles que, especialmente em época de crise, se encontram em pior situação, quer a nível económico, quer a nível social. A solidariedade, segundo o entendimento de quem faz estes apelos, é sinónimo de adquirir bens alimentares ou de higiene e entregá-los às entidades que os recolhem e depois os distribuem numa rede montada para o efeito.
Não vou contestar a boa vontade dos organizadores e dos milhares de voluntários que dão o seu trabalho em prol deste fim, nem vou contestar o espírito de partilha de quem compra e depois oferece os bens a estas organizações, mas contesto profundamente que se chame a isto solidariedade. Solidariedade é um acto da sociedade em redistribuir a riqueza gerada, de forma a que todos, mas todos, tenham acesso aos bens e cuidados elementares, garantindo a dignidade de todo o cidadão. Aquilo de que tratamos é caridade, e nem sequer uma que provenha dos mais ricos, porquanto estes são os donos das cadeias de supermercados, onde os outros compram, para depois dar, tirando assim dos seus magros salários ainda mais do que já contribuem com os impostos.
Não ficando por aqui, até aquilo que oferecemos, com arredondamentos e outras formas de dádiva, não contam como desconto no nosso IRS, mas como desconto nos impostos das grandes empresas que o apresentam como dádiva delas mesmas, fazendo ainda por cima caridade com o dinheiro dos outros.
A tentativa de confundir caridade e solidariedade deve-se à tentativa de fazer com que o comum do cidadão não se questione sobre qual o fim que levaram as suas contribuições para o Estado, e que deveriam garantir estes bens sociais aos mais necessitados. Na realidade as suas contribuições e impostos acabam por ir parar aos bolsos dos que mais têm, através dos subsídios e benefícios fiscais às grandes empresas, que assim nunca perdem, ganham aqui e ainda ganham o lucro do esforço dos cidadãos a ajudar os seus semelhantes.
Acontece que tampouco a pobreza é um fenómeno que apareça por magia, ou seja da escolha dos necessitados. A pobreza é fruto de políticas que persistentemente vão desviando a riqueza dos que trabalham para os chamados investidores, ou seja para o que já possuem capital. Estas políticas que em Portugal vêm sendo aplicadas desde 76 a esta parte, e que fizeram com que o nosso país paulatinamente se tenha tornado, juntamente com o Reino Unido, o mais desigual da União Europeia.
Em termos políticos, não podemos isentar da crise que vivemos o actual Presidente da República. Este enquanto Primeiro-ministro desde meados dos anos oitenta até meados de noventa, foi quem aprofundou e cimentou o modelo de desenvolvimento, privado e a desregular, cujos resultados temos hoje à vista. O modelo de desenvolvimento neoliberal, cujos ideólogos da Escola de Chicago, já haviam testado no Chile de Pinochet, antes mesmo de o terem aplicado sob a Sr.ª Thatcher ou Reagan, foi o mesmo aplicado por Cavaco Silva com a vantagem dos fundos europeus.
A ideia que este homem possa ser reeleito para a Presidência, para mais numa primeira volta, branqueando a sua responsabilidade na presente crise, apenas porque os seus resultados surgiram apenas quase uma década depois de ter saído do poder, é uma ideia sinistra a vários níveis, e que abre caminho a um governo que mais não fará do que aprofundar o desmantelamento da acção social do Estado e logo dos verdadeiros actos de equidade e solidariedade que se impõem para manter, e aumentar, a coesão social do país.
Várias das candidaturas que têm surgido, pese embora se apresentem como defensoras de uma alteração de políticas, na realidade têm ao longo de vários anos sido cúmplices ou coniventes com o receituário social e económico aplicado.
Isto não significa que o eleitorado que com elas se identifica não seja, na maioria das vezes, um eleitorado que se apercebe das injustiças sociais que foram sendo criadas e com as crescentes dificuldades para as classes que sobrevivem do rendimento do trabalho. Portanto e ainda que defenda a urgência de uma mudança de rumo para o país e uma dignificação do trabalho com uma mais justa redistribuição de riqueza, ainda assim defendo também que se impõe uma mobilização em torno destas eleições, empurrando para a segunda volta qualquer decisão que o povo português venha a tomar.
Os dias que temos pela frente são cruciais para a informação e reflexão, de forma a combater a manipulação de factos e memórias em relação aos candidatos no terreno. Só os actos de solidários podem mudar a sociedade, os caritativos apenas mascaram temporariamente a realidade.
Um bom ano de luta em 2011
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