Este texto foi publicado originalmente no Registo:
Nos estertores da monarquia ficou conhecido o infante D. Afonso, irmão do rei, pela alcunha do arreda. Isto porque na falta de buzina o ínclito cavalheiro bradava fortemente “Arreda” a todo o ser vivente que se encontrasse na rota do seu automóvel, coisa que frequentemente acontecia em virtude da raridade dos ditos e da velocidade atingida, pouco vista também ao tempo.
Parece que cem anos volvidos corremos o risco de ter um novo, ou no caso uma nova, arreda. No caso não podemos dizer que se trate de um excesso de velocidade que leva a nossa Arreda a apressar-se a congratular-se com o afastamento de um membro do pessoal da orgânica do seu serviço, poder-se-ia dizer que é indubitavelmente a falta de velocidade que levou a isso, ou mais venenosamente a necessidade de encobrir essa falta de velocidade.
O arredado, por sua vez parece que já se teria tentado arredar em meados de Fevereiro, e por essa altura tal movimento não foi aceite, o que diga-se de passagem constitui um novo paradigma, escolhe-se quem levar as culpas, espera-se até às situações atingirem os foros de insustentabilidade, e depois arredam-se os indivíduos espalhando-se alto e bom som que são eles os culpados de todas as malfeitorias.
Uma ministra vinda do meio cultural deveria ter por certo que a arte raramente é lucrativa, e que quando isso acontece normalmente deixou de ser arte e passou à condição de mercadoria. Acontece que os artistas não são merceeiros e nem podem ser tratados como tal. Parece que o arredado viu isso, mas a nossa Ministra Arreda não.
Durante muitos e muito anos, a arte foi fomentada pelos reis ou ricos homens que queriam ver a sua importância e pujança económica reconhecida pelos demais. Aliás num tempo em que o Estado era ele, o rei utilizava a arte para promover não só o seu poder mas a munificência do reino. Donde pertencia ao Estado a parte de leão no financiamento do processo artístico. Camões ele mesmo não poderia sequer ter sobrevivido sem a tença real, por parca que fosse.
Tal como em outros temas, o nosso actual governo, como aliás os seus antecessores, entendem que aquilo que não dá lucro não serve para nada, donde o processo artístico tem de se sustentar a ele mesmo e, espante-se, afirmam pretender acabar com o parasitismo e a subsídio-dependência. Ora estas palavras e ideias só podem vir
de quem desconhece completamente o mundo da cultura. Os ganhos que se obtêm para o nosso povo, e que advêm deste sector, não são mensuráveis em Euros. Nem se
pode esperar que um criador ou objecto (salvo quando o tempo os torna em valores de comércio e posse apetecíveis) possa gerar meios de subsistência. Se assim fosse quantos famosos artistas e reconhecidas obras de arte, jamais se formariam ou conheceriam a luz do dia.
O princípio de que todo o produto do génio e trabalho humano são objectos de troca e bens comerciáveis, é então não só contrário à própria criação artística como, pela estreiteza dos seus limites, absolutamente incompatível com o processo de criação artística. A desvalorização dos ganhos civilizacionais provenientes da cultura é, na visão dos nossos governantes, idêntico à desvalorização do processo educativo e do acesso à saúde. No entendimento dos nossos governantes estes são luxos e privilégios e não direitos inalienáveis do nosso povo. Daí que não admire as variadíssimas tentativas de por em causa estes direitos no texto constitucional.
Todos sabemos que, com a Revolução de 5 de Outubro, o destino do nosso Arreda foi, uma vez arredado ele da esfera do poder, partir para o exílio onde, suspeito deve ter passado os seus dias arredando outros em qualquer outra língua. Veremos se com o centenário da proclamação da República, também o destino desta e de outros arredas seja o envio para um exílio de poder de onde será desejável que não voltem.
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