quinta-feira, 3 de maio de 2012

Agora como então!

foto: blog masquecena.com


"Um barril grande de vinho havia caído e quebrado-se, na rua. O acidente aconteceu na calçada mesmo à porta da taberna. O barril havia caído com a corrida, os aros tinham rebentado, e ele estava tombado despedaçado como um casca de noz. Toda a gente em redor suspendeu os seus afazeres, ou o seu ócio, para acorrer ao local e beber o vinho. As  pedras toscas e irregulares da rua, apontando para todos os lados, e concebidas, poder-se-ia pensar, expressamente para estropiar todas as criaturas que delas se aproximassem, aprisionaram-no em pequenas poças. Estas foram rodeadas, cada uma por seu grupo ou multidão, de acordo com o seu tamanho.  Alguns homens ajoelharam-se e fizeram concha com as duas mãos juntas, e sorviam ou tentavam ajudar as mulheres, que se curvavam sobre os seus ombros a sorver, antes que o vinho se tivesse esvaído todo entre os seus dedos. Outros, homens e mulheres, mergulhavam as suas malgas de louça rachada, ou até mesmo os lenços de cabeça das mulheres, que eram espermidos na boca das crianças. Outros ainda faziam pequenos diques de lama para reter o vinho à medida que corria. Alguns dirigidos por observadores nas janelas acima, tapavam aqui e ali, para deter pequenos regos de vinho que corriam em novas direcções. Outros Dedicavam-se aos pedaços encharcados e tintos do barril, lambendo e chupando os fragmentos húmidos do vinho com ávido deleite. Não houve valeta para escorrer o vinho, mas não só foi todo consumido, mas tanta lama foi consumida com ele, que quem não conhecesse o local pensaria que poderia ter passado um varredor pela rua, se por milagre tal figura ali existisse. (...) O vinho era tinto e manchou o chão da rua estreita no subúrbio de Saint Antoine, em Paris, onde se derramou. Tinha manchado muitas mãos, também, e muitos rostos, pés descalços e tamancos. As mãos dos homens que sorveram a madeira, deixaram marcas vermelhas nas cartas e as frontes das mulheres que embalavam os seus filhos estavam tingidas com a nódoa do farrapo velho que cingia de novo a sua cabeça. Os que haviam sido ávidos com os restos do barril, haviam adquirido uma mancha tigrina na boca, e um diabrete encharcado, com a cabeça de fora, mais de um saco esquálido do que de um gorro, gravava numa parede com o seu dedo mergulhado em borra de vinho - SANGUE." Charles Dickens "História em Duas Cidades"

2 comentários:

Anónimo disse...

O camarada Saramago tb ilustrou até que ponto a dignidade humana pode descer ao nível dos animais no livro "Ensaio sobre a Cegueira".

No fundo é e numa ultima análise, é este o penso da sociedade capitalista. A indignidade humana.

uma meia dúzia de gajos pelo simples prazer, pela grande força do dinheiro, para ver uma maioria de gajos de cócoras, não se coíbem de atirar moedas ao chão.

E ainda dizem que são uns beneméritos, porque as pessoas que as apanham até ficam contentes!!!!

As que optaram pelo 1º de Maio, ficaram sem as moedas. E dá-lhes tanto gozo provar que são mais os que preferem apanhar moedas, do que os que lutam pelos direitos dos outros.

É o verdadeiro ADN do capitalismo. Não promover a luta de classe, mas a luta de cada um dentro da classe (ou dentro do supermercado) para manter ou mudar de classe.

E vão voltar a fazê-lo,
as moedinhas vão saltar da bolsa,

porque eles podem e nós deixamos.

Miguel Cabaço

Carlos Moura disse...

Pois é Miguel, mas a cena que o Dickens descreve situa-se apenas a alguns meses de distancia da Revolução. E os mesmos que sorveram o vinho e a terra, os mesmos que dias depois aplaudiam o Rei e a Rainha em Versailles, foram exactamente os que depois lá os foram buscar, trouxeram para Paris e por fim assistiram regozijantes à sua decapitação, bem como à decapiatação dos que mantinham o Ancien Regime.
A Revolução, não seria ainda aquela que os libertará, mas significou um enorme avanço na história da humanidade. Vamos lá a ver se não assistiremos ainda em vida à "decapitação" dos que jogam as moedas no ar.
Abraço Grande