quarta-feira, 23 de maio de 2012

Austeridade au Sauce Hollandaise!


O Presidente da República Portuguesa teve uma súbita tirada esta semana, das raríssimas vezes que conseguiu articular duas frases com sentido, em que se regozijava com o facto de medidas de crescimento e alívio da austeridade estarem a ser congeminadas, seja lá o que for congeminar, nos opacos corredores do poder dessa Europa de alguns – ou até corredores de poderes ainda mais obscuros – e que não é tangível a todos.

Queria o inquilino, que por cegueira e falta de memória crónica (e há quem defenda que peixe ajuda à memória. Não quero pensar no que seria se Portugal não fosse dos países onde se come mais peixe), o povo Português colocou em Belém, que as medidas de austeridade, essas imaginadas pela Troika e que os nossos Governantes “do costume” obedientemente levam a cabo e que aproveitam para destruir os pilares da nossa democracia saída da Revolução, tinham de ser temperadas com outro molho.

Seguramente o nosso Presidente tem presente que a comida requentada, da véspera e antevéspera, na maior parte das vezes nem muito fresca, só engana o palato quando generosamente regada de molhos que disfarçam não só o sabor mas igualmente o triste aspecto, mantendo por baixo a mixórdia.

Como co-cozinheiro da mixórdia, porém, defende longe das vistas aquilo que cozinhou, e quem o tivesse visto perorar em Jacarta (ou ouvido, ou lido aquilo que perorou) não ficaria com qualquer dúvida sobre a defesa das medidas da Troika, que fez, acrescentando que depois destas a economia portuguesa e o “ambiente” para os negócios se irão tornar mais competitivos. Isto é… as medidas de aumento de impostos, retirada de direitos sociais, apropriação dos 13º mês e subsídios de férias, precarização do trabalho, despedimentos fáceis e baratos, tudo isso que aqui o fez falar em outros temperos, é fora de portas apresentado como atractivo do tipo “venha e explore a gosto!”.

Quer o Presidente que o molho agora à mesa – uma espécie de sauce Hollandaise, graças à figura a quem agora se agarram para não serem em breve varridos do mapa – iluda mais uma vez os portugueses em relação aquilo que os mandantes cozinham e que lhes põem no prato. Tal como já uma vez fez em relação à sua criminosa política de destruição da capacidade produtiva nacional, ao tempo em que era primeiro-ministro, e cujo tempero com que foi requentada lhe permitiu ascender à mais alta magistratura da nação.

Não há erro possível. O que nos servem é mais do mesmo…e se duvidam levantem o molho e vejam o que está por baixo.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Agora como então!

foto: blog masquecena.com


"Um barril grande de vinho havia caído e quebrado-se, na rua. O acidente aconteceu na calçada mesmo à porta da taberna. O barril havia caído com a corrida, os aros tinham rebentado, e ele estava tombado despedaçado como um casca de noz. Toda a gente em redor suspendeu os seus afazeres, ou o seu ócio, para acorrer ao local e beber o vinho. As  pedras toscas e irregulares da rua, apontando para todos os lados, e concebidas, poder-se-ia pensar, expressamente para estropiar todas as criaturas que delas se aproximassem, aprisionaram-no em pequenas poças. Estas foram rodeadas, cada uma por seu grupo ou multidão, de acordo com o seu tamanho.  Alguns homens ajoelharam-se e fizeram concha com as duas mãos juntas, e sorviam ou tentavam ajudar as mulheres, que se curvavam sobre os seus ombros a sorver, antes que o vinho se tivesse esvaído todo entre os seus dedos. Outros, homens e mulheres, mergulhavam as suas malgas de louça rachada, ou até mesmo os lenços de cabeça das mulheres, que eram espermidos na boca das crianças. Outros ainda faziam pequenos diques de lama para reter o vinho à medida que corria. Alguns dirigidos por observadores nas janelas acima, tapavam aqui e ali, para deter pequenos regos de vinho que corriam em novas direcções. Outros Dedicavam-se aos pedaços encharcados e tintos do barril, lambendo e chupando os fragmentos húmidos do vinho com ávido deleite. Não houve valeta para escorrer o vinho, mas não só foi todo consumido, mas tanta lama foi consumida com ele, que quem não conhecesse o local pensaria que poderia ter passado um varredor pela rua, se por milagre tal figura ali existisse. (...) O vinho era tinto e manchou o chão da rua estreita no subúrbio de Saint Antoine, em Paris, onde se derramou. Tinha manchado muitas mãos, também, e muitos rostos, pés descalços e tamancos. As mãos dos homens que sorveram a madeira, deixaram marcas vermelhas nas cartas e as frontes das mulheres que embalavam os seus filhos estavam tingidas com a nódoa do farrapo velho que cingia de novo a sua cabeça. Os que haviam sido ávidos com os restos do barril, haviam adquirido uma mancha tigrina na boca, e um diabrete encharcado, com a cabeça de fora, mais de um saco esquálido do que de um gorro, gravava numa parede com o seu dedo mergulhado em borra de vinho - SANGUE." Charles Dickens "História em Duas Cidades"