Fantasmas do petróleo
Há 10 meses
Aqui há anos atrás a saudosa Ivone Silva criou uma magnifica rábula que tinha como mote: “Com um simples vestido preto…eu nunca me comprometo”. A certo ponto dessa rábula afirmava ela que à direita punha um laço, por causa das alianças, e à esquerda punha um cravo, que lhe trazia outras lembranças. Não é a primeira vez que me lembro desta rábula, mas de todas as vezes parece bem aplicada ao partido que é suporte do actual governo.
Fazendo sempre alarde de políticas de esquerda, e principalmente fazendo grande alarido de medidas a que normalmente se associa uma actuação de esquerda, especialmente aquelas que sem grande alcance social levem a grandes manchetes de jornal e horas infindas de noticiário televisivo, o governo e a sua base partidária vão cimentando uma imagem de esquerda civilizacional à qual não corresponde a sua prática diária.
As negociações do novo Orçamento de Estado vieram demonstrar, cabalmente e para grande espanto de quantos se enlevavam pelo acordo com os professores ou pela novela do casamento gay, que, no que diz respeito à distribuição de riqueza, aos direitos dos trabalhadores, às questões fiscais, nomeadamente o esforço do pagamento especial por conta das micro e pequenas empresas, esta “esquerda” se entende muito bem com a direita e com o aval de uns e a abstenção de outros constrói-se uma bela aliança que permite prosseguir políticas de encerramento de serviços públicos, alargamentos de horários, benefícios fiscais para os sectores financeiros, beneficiando claramente quem mais acumula em detrimento de quem mais precisa.
No meio disto tudo quem vê a causa mas esquece a consequência, afanado que está em dirigir uma frente constituída por coisas que lá não estão, sai atrás do batalhão mal lhe chega um vago som de trombeta, que lhe diz que o governo e seu suporte farão, com ele, coro numa qualquer candidatura presidencial. Se por acaso, e este acaso depende grandemente da percepção que este governo vier a ter da conotação da sua governação, o candidato presidencial do governo e do seu partido pode bem ser outro, e lá vão os cravos e as esquerdas plurais às urtigas.
Ensina-nos a história, e já nem tão recente assim, que, pese embora com uma base sociológica que se identifica à esquerda, há muito que a actual maioria não propõe, promove, ou concretiza políticas de esquerda. Os principais objectivos económicos e acções, com ênfase no princípio da sujeição da sociedade à economia, demonstram que não existe correspondência entre o seu discurso e actuação e que procurar de forma activa uma acção ou posição comum, no pressuposto de que se podem criar pontes ou elos, é uma ideia tão seráfica quanto mirífica. Estes são no essencial, constituídos entre este governo, e a sua maioria, e os partidos de direita.
Uma política de esquerda que o seja de facto não surge portanto assim. Não é uma soma de votos, não é um repartir de lugares, não é um agitar de encenações. Uma política de esquerda surge da discussão aturada das várias propostas programáticas, do delinear de objectivos de sociedade, do conciliar das diferentes metodologias e estratégias entre as várias forças em presença e da perseverança numa acção que satisfaça esses objectivos. Tudo o mais é olhar a realidade com “óculos de ver ao longe, com lentes de ver ao perto”.
Depois do encerramento das unidades materno-infantis, depois do encerramento de Centros de Saúde. É agora notícia que, encerrarão as unidades de atendimento de oncologia, que não tenham um atendimento igual ou superior a 500 novos casos/ano, de acordo com um Estudo do Ministério da Saúde. O Governo desmente, garantindo que estamos apenas perante uma matriz de avaliação que permitirá desenhar a rede de cuidados, mas não só ninguém acredita que os estabelecimentos não encerrarão, como estas palavras são até indiciadoras do contrário: Uma rede desenhada para que algumas unidades absorvam aquelas com um número, considerado baixo, de doentes.
O planeamento, como se sabe é extremamente importante para a canalização de recursos, especialmente quando estes são parcos, mas tem forçosamente de ter em conta não só as zonas de maior prevalência da doença, mas também a área abrangida, procurando atenuar a distorção do território, o que no nosso país se tem vindo a tornar bastante difícil.
Foi com muita preocupação e uma considerável dose de horror que li num título de notícia de jornal, a este propósito, que: “O Alentejo em peso está todos os dias em frente ao IPO”. Salvo o exagero próprio das parangonas sensacionalistas, quer isto dizer que há serviços de bombeiros ocupados todos os dias com transporte de doentes dos mais variados Concelhos Alentejanos, rumo a Lisboa. Sendo que se estão ocupados nesta tarefa podem eventualmente fazer falta em várias outras tarefas em que a actividade de Bombeiro se encontra envolvida, mesmo fora dos períodos estivais e que, a atenção aos estragos das intempéries vividas este inverno bem demonstram.
Mas quem diz o Alentejo, diz outras zonas do país que têm vindo a ser votadas ao mais evidente abandono, provocando a sua desertificação humana, fruto de sucessivas políticas que impossibilitaram o desenvolvimento das suas aptidões naturais, mas isso são outras histórias.
Esta política, que além de economicista só serve a quem inaugura pouco depois unidades de saúde privadas, procura respaldar-se em dois argumentos: Um, que é necessária uma concentração para garantir que estas unidades se encontram melhor equipadas, posto que o orçamento não chegaria para equipar várias; Dois, que não há pessoal em número suficiente com formação para atender estes pacientes, até porque o número admitido a estas especialidades é muito baixo. Tratam-se porém de dois gatos escondidos cujo rabo ficou bem à vista: Um, porque quando se trata de benefícios às populações os valores orçamentados nunca chegam para nada, mas vêm sempre chegando para injectar em bancos e benefícios a investimentos cuja durabilidade e interesse são mais do que incógnitas; Dois, porque o planeamento teria de servir também para detectar o número de profissionais necessários para o serviço à população, e a abertura de vagas nessas especialidades ter de ser, a essas necessidades, adequada.
Há por fim um último argumento ainda. Leio no mesmo diário que o Governo de França, esse exemplo flagrante de atraso crónico, determina como número bastante, para que uma unidade de cuidados oncológicos cumpra a sua função social, 120 novos casos/ano, e que a própria Ordem dos Médicos, entende que essa cifra deveria estar nos 150, o que convenhamos é bem diferente dos 500 do estudo governamental. Se a tudo isto somarmos que em Portugal as despesas da saúde em cuidados oncológicos rondam os 3,8%, contra a média Europeia de 6,4%, estamos conversados. Até onde pode este Governo ir? E até quando estaremos nós dispostos a aturar estas indignidades?
Devo confessar que não pensava em começar esta crónica com uma bem-aventurança, mas é imperativo que diga, bem-aventurados os erros, pois podem ser corrigidos. Isto a propósito da “gralha” da semana passada que me atribuiu um texto que nunca poderia ser da minha autoria, e ao devido autor desse texto atribuiu a minha crónica, que estou em crer tampouco poderia ser escrito por ele.
De qualquer forma não posso deixar de considerar que é um erro particularmente feliz, porque me obriga a fazer uma pequena reflexão sobre o tema da ética nas empresas que, de outra forma, não seria com certeza um tema sobre o qual partilhasse com facilidade as minhas reflexões.
A ética, que não pouco frequentemente vem associada à responsabilidade social da empresa, é algo que está muito em voga, desde há uns anos e particularmente com maior ênfase desde o início da crise do sistema bancário. No entanto, como lembrava um articulista, completamente insuspeito de marxismo, há bem poucos dias, o neoliberalismo tem sido a causa dos sofrimentos dos povos, desde que se impôs como doutrina dominante.
A realidade porém é bem mais sinistra, o neoliberalismo não é uma doutrina aparecida de repente como um cogumelo emergente, ela é apenas o retomar dos princípios da livre iniciativa e do livre mercado, de preferência o mais desregulamentado possível, que já haviam causado a crise dos anos 30, tendo sido travados momentaneamente durante a era de decurso das experiências Socialistas.
Aliás os princípios pelos quais uma empresa se rege, ou seja garantir o sucesso do seu produto, livrando-se da concorrência a médio e longo prazo, e que são inseparáveis do pensamento neoliberal, pouco se coadunam com as questões de ética ou responsabilidade, pois estas representam prescindir de uma parcela do lucro que se pretende maximizar.
Quando um produto é vendido ele incorpora como valorização da matéria-prima, o valor do trabalho despendido para o produzir, que não é pago pelo seu valor social, donde é desde logo uma externalidade social, e um valor de energia e de alteração do meio envolvente, normalmente com os rejeitos, de custos normalmente suportados pela sociedade, donde externalidades ambientais.
A empresa perfeita, do estrito ponto de vista da economia capitalista, é aquela que consegue minimizar os gastos com trabalho e com as questões ambientais, ou seja obter o máximo lucro com o mínimo custo possível. De outra forma irá estar sempre em desvantagem produtiva. Quando por via da lei é limitada a liberdade de actuar nos campos laborais e ignorar as questões ambientais, gerará mais lucro aquela que conseguir a maior impunidade no contorno dessas situações, ou no limite aquela que se deslocalizar para zonas onde esses escolhos sejam facilmente ultrapassáveis. Daí os maravilhosos destinos e economias em ascensão que tanto nos foram apresentados como, “os tigres”, e tão responsáveis pelos celebérrimos Made in.
São profusamente conhecidas empresas responsabilíssimas social e ambientalmente, com certificações e rotulagens de comércios justos, ecológicos, que recusam o trabalho infantil, que não utilizam peles de animais, enfim, uma miríade de distinções, e que depois são apanhadas a “pintar e bordar” com os direitos laborais e ambientais das populações autóctones. Tudo isto porque, no final das contas, é sempre a natureza da sobrevivência e prosperidade da empresa capitalista que a orienta, por mais que propague o contrário.
A única empresa verdadeiramente responsável, seria a que pagasse o salário socialmente justo, sem apropriação de mais-valias, a que custeasse a recuperação dos danos ambientais desde a produção da matéria-prima até ao desperdício causado pela sua produção, a que internalizasse os custos energéticos da utilização do produto, mas nesse caso o investimento não tinha retorno porque a equação teria resultado nulo, ou tendencialmente, medindo-se a eficiência da mesma na satisfação das necessidades dos utilizadores. Mas afinal isto é o que já acontece, ou deveria, com as empresas públicas.
Concluindo, a ética e a responsabilidade social e ambiental não são parte integrante da empresa capitalista, especialmente da grande empresa de capital multi ou trans-nacional, porque são essencialmente contrários à sua natureza e objectivos. Não quero com isto dizer que não existam pessoas que, de uma forma algo piedosa, não tentem incorporar estas noções nas políticas de empresa. Nem quer isto dizer que não existam pessoas que, bem intencionadamente também, acreditem ser possível fixar este tipo de valores nas empresas onde trabalham. Mas como afirmava Brecht: “Quem é pelo capitalismo e contra a barbárie, é como querer comer o bife e ter muita pena de matar a vaca”. Só que isto não é possível, porque simplesmente não o podemos cortar com ela viva.
É erro, mas não é gralha. O trocadilho entre janeiras e asneiras pode ser muita coisa mas não é seguramente inocente. O ano de 2010 começa mostrando a mais visível face de um sistema que, pese embora se encontre num estado lamentável, faz lembrar a maquilhagem exagerada de certas senhoras, que procuram através de carmesins e rosas emprestar ao seu aspecto um vigor que a idade já não confere.
O encerramento da Regency e da Delphi, no último dia do ano, deixando sem emprego, ou perspectivas de futuro, centenas de trabalhadores, contrasta profundamente com aquilo que foi aclamado pelas televisões como a maior subida de sempre na bolsa de Lisboa, repondo-a a níveis anteriores a Setembro de 2008.
Isto mostra que entre sistema produtivo, aquele que de facto gera riqueza, e o financeiro, que joga com putativos ganhos cuja origem é na maior parte das vezes completamente incompreensível, o abismo aberto é cada vez maior e tende a agravar-se. A bolsa, que nunca foi outra coisa do que um casino, onde se jogavam fortunas e no fim a casa ganhava sempre, teve ainda assim na sua origem uma débil ligação à riqueza que um país era capaz de gerar. Hoje continua sendo um casino, mas cujos resultados são tanto melhores quanto maiores forem as capacidades de eliminar os factores de produção de um pais, transformando-o numa mera plataforma de transacção de notícias, dicas ou meros rumores.
Só que os países não são números, estatísticas ou posições nos rankings de empresas, também elas parte interessada na transacção, mas são o conjunto de território e populações que, no sistema que nos impõem, lutam arduamente pela sua sobrevivência, bem como dos seus, e essa sobrevivência não se faz de especular com coisa alguma, faz-se de consumos de produção que ou é local, gerando ganhos com potencial de serem utilizados ao serviço do bem comum, ainda que muitas vezes o não sejam. Ou é externa obrigando a gastos superiores aos rendimentos gerados.
No fim de tudo temos uma economia que não produz, que é incapaz de promover o bem geral da população que dela depende, cuja capacidade de endividamento se vai esgotando, mas em que a sua bolsa vai batendo recordes, propagandeando um bem-estar económico que interessa apenas aqueles cujas fortunas nada têm a ver já com a economia nacional. Para todos os outros, os que se mantêm pelo trabalho ou pelos pequenos negócios locais, sobra o desemprego a falência. Apoiar tudo isto é assim uma asneira crassa. Feliz 2010.